1844

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INTRODUÇÃO

"Várzea de Santana, 24 de fevereiro de 1844.

 Querida Caetana,

 Escrevo para dizer-lhe que minha saúde melhorou.Com o verão e o tempo seco, meus pulmões têm estado mais dóceis e pacientes comigo, o que me permitiu voltar à frente dos meus homens, depois do penoso inverno que amarguei. Saiba vosmecê que agora estamos acampados juntamente com outros generais, e que fazia muitos dias não parávamos, mas percorríamos a Campanha de sol a sol, dormindo ora aqui, ora acolá, evitando assim que os homens de Caxias pudessem nos cercar numa madrugada malfazeja qualquer.

 Este ano que passou foi mui difícil para a República e para os nossos exércitos. Tivemos uma infinidade de pequenas batalhas, a maioria delas com saldo negativo para as nossas tropas. Tudo isso vosmecê deve ter ouvido de Caetano, que faz pouco esteve le visitando. Mas le repito essas tristezas para que vosmecê saiba que ainda tenho forças para brigar com o inimigo, e que, enquanto Deus assim me mantiver, estarei aqui, em frente ao meu exército, pelejando por essas coxilhas. Não sou mais presidente da República, mas ainda — e sempre — um soldado incansável.

 Aqui no acampamento, as cosas vão malparadas. Não somos mais os mesmos homens, estamos divididos. Não reconheço Lucas, nem Onofre, meu primo, que anda abertamente me caluniando. Quanto a isso, vosmecê sabe que preciso fazer alguma cosa. Pensarei em algo nos próximos dias. E vosmecê terá mais notícias minhas.

 Com todo o meu afeto,

 Bento Gonçalves da Silva."

*

 Um calor seco pairava por tudo. Ao fundo, se ele afinasse oouvido, podia ouvir os murmúrios do rio. O acampamento estavasilencioso. A madrugada ia alta, estrelada e fresca. Insetos voavampela noite, cigarras cantavam, os angicos pareciam também dormirsob o sereno, mansamente.

 Bento Gonçalves da Silva ergueu-se do tamborete onde estavasentado e saiu a caminhar por entre as barracas. A angústiaconsumia-o inteiro. Ele viu a sombra de Congo a mirá-lo, de longe.Fez um gesto indicando que não precisava de nada, o negrodesapareceu dentro da barraca. Na verdade, tinha muita precisão dealgo: falar com Onofre. Tinha crescido com o primo, cavalgado com oprimo, tomaram banho de sanga juntos, lutaram no Uruguai,confabularam juntos, e juntos iniciaram aquela revolta. Agora eraminimigos.

 Pisava o chão ressecado. Um cavalo resfolegou ao longe. Seuorgulho não podia admitir as atitudes de Onofre Pires. Já tinha sidoachincalhado por demás. Precisava dar um basta, a qualquer custo.Por isso lhe escrevera aquela carta. Tinha querido abrir um processocontra o coronel Onofre. Impossível, devido à sua condição dedeputado. Então precisava saber do próprio se era verdade o que seandava a dizer por ali, que várias vezes Onofre tinha ofendido a suahonra, que o chamara de ladrão. Passava da meia-noite. Onofre jádevia ter lido a sua carta. Ao longe, no outro acampamento, talvezestivesse escrevendo uma resposta.

 Bento Gonçalves aspirou o ar da noite. A tosse insinuou-se,sutilmente, como um cachorro velho que busca o calor da lareira. Elerechaçou-a com cuidado. Queria esquecer a doença. Queria esquecerOnofre. Olhou o céu pontilhado de estrelas, tentando descobrir o quelhe reservava o dia seguinte.

**

 O soldado entregou a carta e bateu continência, depois sumiu,engolido pela claridade atroz que se derramava do céu de verão.Bento Gonçalves entrou na barraca. Abriu a carta e leu-a em pémesmo.

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