O pai de Neville se debatia entre febre e delírio, havia guinchos à meia noite, o cheiro de suor, lençol de algodão e sangue.
— Ele nunca mais vai andar — disse Neville.
— Mas vai se erguer — disse Maëlle, mãe de Neville.
— Não pode lutar.
— Você se esquece de quem é seu pai. Ele me ensinou tudo sobre bushido. Um homem como ele não permanece caído.
A mãe estava tão certa da recuperação completa do pai. Já Neville se perguntava como pode alguém se recuperar completamente quando não se está completo?
Naquela mesma tarde, o capitão de Baynard acordou. Maëlle e Neville, rindo e chorando, moveram-no para uma cadeira estofada perto da janela e fizeram comidas, ofereceram licor eslariano. O capitão sem pernas não olhou para a esposa, nem para o filho; não olhou para nada. Ficou encarando a janela, sem ver nem fora nem dentro, perguntando em silêncio um abandonado Por quê...?
Três semanas depois, a Caravana de Rimbaud chegou à capital de Baynard. O capitão havia prometido ao filho que passeariam por Debur, que veriam a caravana juntos esse ano. Neville não tinha ficado feliz com a perspectiva. Tinha quatorze anos e a última coisa de que precisava era do pai atrapalhando ele e seus amigos.
Agora, porém, Neville esperava que a perspectiva de ver a feira juntos arrancasse o pai daquele silêncio de voz e de alma. Ele havia, afinal, dito que iriam juntos e isso, para um guerreiro como o pai, era uma promessa.
— Não se preocupe, filho, seu pai honrará a promessa que fez — disse Maëlle antes de sair para trabalhar.
Maëlle era dona da única biblioteca e livraria de Debur, talvez de Baynard. Ali se encontravam muitos livros sobre Sátiron, o Império, Yukari Nakamura. Havia livros com imagens que Neville não conseguia entender, de cavaleiros negros montados no que pareciam ser enormes aranhas de muitas pernas, só que essas pernas pareciam galhos e troncos. Bushido foi uma palavra trazida por Nakamura do outro mundo, onde ela nasceu. Bushido era honra, mais forte que pernas, desejos e medos. Um guerreiro jamais quebrava uma promessa, jamais remoldava sua lealdade. A palavra de um guerreiro era o corte de uma espada. Não tinha volta.
O pai de Neville havia lido todos os livros a respeito de Nakamura e sua filosofia. Ele não se interessava pelas imperatrizes, nem por Sátiron em si. O capitão não se interessava por nenhum outro mistério: somente Nakamura.
Neville também leu alguns daqueles livros, mas se confundiu quando um livro anjariano exaltou a mulher guerreira como líder social, enquanto um livro gorgathiano colocava a mulher líder como essencial, mas também como pária da sociedade; uma espécie de mal necessário, doença que Sátiron espalhou pelo mundo; alguém que você não convidaria para o aniversário de seus filhos.
— São interpretações — disse Fulion. — Nenhum desses livros foi escrito por Yukari Nakamura.
Fulion era sócia de Maëlle. Era ela quem conseguia os livros para a biblioteca de Debur. Nem Maëlle sabia direito onde aquela mulher conseguia os exemplares. Às vezes, Fulion passava meses desaparecida, para voltar com um baú lotado de livros, muitos em línguas estrangeiras, mas alguns também em franês. Então, ela sumia novamente com os livros estrangeiros e voltava com cadernos escritos à mão.
— Traduções — ela dizia.
— Quem traduziu? — Maëlle perguntava.
Fulion fechava a boca. Tinha pele sulcada de vento e cabelos crespos clareados pelo sol. Olhos claros como cristais, pupilas pequenas, joelhos virados para fora, moldados pelo cavalo. A única criatura capaz de amolecer os sulcos no rosto de Fulion era o cavalo branco e preto. Chamava-se Mancha e mordia qualquer um que não fosse a dona.
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A Boca da Guerra
FantasyUma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...