Vivianne acordou. Lâminas de luz perfuraram seus olhos e ela fechou eles de novo. Deve ter gemido, pois alguém murmurou palavras gentis em seu ouvido. Sentiu uma mão sob a nuca e um copo em seus lábios. Um líquido morno e melado rastejou por sua garganta e Vivianne voltou a dormir.
A segunda vez que Vivianne acordou, sua cabeça não se rasgou tanto. Desta vez levantou as pálpebras bem devagar, dando-se tempo para se acostumar à luz. Alguém fechou as cortinas e Vivianne conseguiu abrir os olhos completamente. Demorou um pouco para eles focarem num quarto desconhecido com chão de madeira. O braço de Vivianne descansava sobre uma colcha feita de retalhos azuis e brancos. Havia um vasinho com flores silvestres vermelhas numa mesinha ao lado da cama, bem debaixo da janela com cortinas floridas esvanecidas pelo sol. Numa cadeira com braços que terminavam enrolados que nem caramujo sentava-se uma jovem negra num vestido rosa. O vento moveu as cortinas e um raio de sol iluminou a mulher, depois a cortina caíu e a sombra voltou e a cortina se ergueu e a cortina caiu, luz, sombra; olhos castanhos, olhos púrpura, castanhos.
— Bom dia — disse Vivianne, rouca.
A mulher se levantou, e fez uma mesura.
— Líran de Oz, ao seu dispor.
— Nunca ouvi falar. — Vivianne tentou sentar, mas uma pontada na perna a convenceu a não se mover.
— Você nunca me viu antes — disse Líran.
— Me refiro a Oz. Onde fica?
— Não existe.
Vivianne escorregou pela cama, tentando encontrar uma posição mais cômoda. Sua cabeça já não doía tanto, o que tornou mais evidente a dor na perna. O movimento todo fez cabeça e perna protestarem num rasgo branco. Vivianne apertou os olhos.
— Você não pode vir de um lugar que não existe.
Líran ajudou-a a se sentar.
— Sou Líran, contadora de histórias.
Vivianne descansou as costas nos travesseiros e tentou se lembrar de como havia parado naquela cama. Sua memória gritou em sangue e fogo. O crânio de Vivianne queria rachar. Sentiu Líran colocar um copo d'água em suas mãos e então ouviu a voz da contadora de histórias, deslizando como um sopro de vento para dentro de sua mente. Um brisa cintilante e púrpura cobriu o fogo e o sangue como um véu.
Na voz de Líran havia um lobo cinzento. Ele estava em uma floresta com casas entre árvores ancestrais cobertas com neve macia, cheia de etrelas onde raios de sol escapavam das copas e corriam pelo chão. Então surgiram casas feitas com a mesma pedra esverdeada do Esmeralda, que só podia ser encontrada na Fronteira ou em Sátiron, quando Sátiron ainda existia.
Atrás do lobo havia um rio largo como um mar. Do outro lado moravam trevas. A voz de Líran disse em púrpura:
— Ali é a Terra dos Banidos; aqui é a Fronteira.
Ao lado do lobo havia um jovem da mesma idade de Vivianne. Tinha pele vermelha, olhos de mel, se chamava Pierre. Sete dias antes, ele havia cruzado o rio em direção à Terra dos Banidos, onde nenhum mortal havia pisado em quatrocentos anos. Hoje ele havia voltado, montado em um lobo de Sátiron.
— Como é possível? — perguntou Vivianne.
Líran não sabia.
Ao redor de Pierre se agruparam a Fronteira, a Caravana, os sobreviventes de Lencon, que Neville destruiu. Queriam ver o homem que havia ido e voltado das trevas. Rodearam-no, mas ninguém se aproximou. Pierre estava envolto em mistério e trevas, a mão pousada nas costas do lobo. Vivianne sentiu na própria mão a maciez grossa do pelo cinzento. Sentiu também a textura da mão de Pierre descansando sobre o lombo cinza.
Ela soube, antes mesmo de Pierre levar a mão ao peito, o que ele carregava no bolso. A Fronteira, a Caravana e Lencon assistiram ele erguer uma escama com textura de cerâmica. Vivianne reconheceu na escama o vermelho da própria morte.
— Eu deveria estar morta — ela disse.
Pierre, com a escama na mão, falou:
— É tempo de agir. É tempo de a Fronteira sair das sombras e enfrentar as trevas.
O lobo se afastou, cruzou o Sangue e sumiu na treva dos Banidos. Ouviu-se um uivo, que ficou preso nas dobras do ouvido de Vivianne.
— Gostou da história? — perguntou Líran.
O coração de Vivianne batia acelerado.É tempo de agir, havia dito Pierre, eao fundo, sublinhando o uivo do lobo cinzento, o grito de uma águia. Assim,embalada por águias e lobos, ela voltou a dormir.
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A Boca da Guerra
FantasiaUma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...