Frederico perambulava as ruas de Beloú à noite, açoitado por pesadelos. Após três ou quatro noites sem dormir, ele finalmente desmaiava em algum canto da Mansão Real de Beloú. Então ele chutava, gritava, implorava:
— Pare. Por favor, pare.
— Afinal, com o que você sonha? — perguntou Faust.
— Um cão.
— Esse cão te ataca? Mate o bicho. Frederico, você tem de aprender a se defender. Eu treino com você todos os dias, mas você nunca usa a espada fora da Mansão. Você precisa fazer justiça. Eu não consigo reger esta cidade e lutar uma guerra com você me impedindo de disciplinar meus homens.
Frederico encostou o queixo no peito. Seria ele um peso para o irmão? Desde que se mudou para Beloú, Faust não conseguia punir seus soldados direito. Frederico achava as punições muitas vezes injustas e frequentes demais. Ele constantemente intervinha e convencia o irmão a desistir delas. Aquela maldade toda era influência do pai sobre Faust e Frederico não aguentava ver o irmão, melhor homem e melhor governante do que Fulbert de Patire, perder o respeito de seus homens por causa de atitudes que refletiam o rei com F.
Fei Fulbert de Fatire. Fezes começam com F.
Frederico saíu para o pátio e desceu a rua de paralelepípedos soltos até a praça com uma fonte seca no centro. Beloú, Vivianne um dia iria ensinar, era uma cidade típica Franesa de antes do Império. Uma das poucas sobreviventes da Era Negra (irônico, pensou Frederico, sobreviver à Era Negra só para ficar nos lábios da guerra com a quebra do Império), Beloú tinha muralhas mais grossas do que as das cidades pós Era Negra, pois a tecnologia para fazer paredes inquebráveis e finas veio de Sátiron. As casas de Beloú eram feitas com um antepassado da alvenaria atual, uma mistura de argila, pedra e serragem, que resistia bem ao tempo mas deixava as casas sempre frias.
O inverno em Beloú era cruel. Dentro das casas fazia quase tanto frio quanto nas ruas e não havia lenha o bastante para aquecer toda aquela gente. Os soldados tinham prioridade. Precisavam sobreviver para morrer na Boca. Os civis queimavam o que encontravam. Pedaços de caixas, fezes de gado.
Na Mansão havia lareiras. Nem todas convertidas. A Mansão Real de Beloú havia sido construída durante o Império. Frederico sabia disso mesmo antes de conhecer Vivianne, não apenas porque as paredes eram finas e brancas e a casa inteira mais quente, apesar das janelas grandes de vidro duplo, como porque havia lareiras convertidas. Algumas alas da Mansão ficavam fechadas, pois não eram necessárias e Faust optou por um espaço menor, mais fácil de gerenciar. Foi ele quem converteu as lareiras dos quartos, mas não se preocupou com o resto da casa.
Quando Frederico percebia que o irmão precisava de espaço para governar com sossego (palavras de Fasut), ele subia até o sótão, que ligava o quarto dele com uma das alas fechadas da Mansão. Ali ele descobriu mecanismos. Botões, alavancas, lâmpadas. Ele imaginou para quê serviam as lâmpadas, já que ficavam onde deveria haver tochas, mas nem sempre conseguia descobrir a utilidade de um botão ou uma alavanca. Abrir portas? Janelas? Dobrar o chão em dois? Fazer brotar uma mesa cheia de doces no centro de uma parede particularmente vazia?
As lareiras na ala antiga tinham botões e placas de vidro na frente. Como se fazia para colocar a lenha? E para onde ia a fumaça? Faust teve de reformar a casa para abrir chaminés. As lareiras antigas eram apenas buracos na parede.
Frederico não gostava de sair da Mansão. Às vezes, quando o pesadelo o atormentava e ele pertambulava na névoa noturna, alguma coisa o observava por cima da muralha. No começo, Frederico achou que era sua imaginação, o pesadelo tingindo a neblina com trevas. Mas os dias escorriam e mais e mais Frederico sentia o peso de alguém a observá-lo. Fosse lá o que fosse, não gostava de Frederico. Das muralhas vazava um desprezo, uma raiva muito parecida com a que emanava do rei de Patire. Tornava mais nítidas as mãos do pesadelo do príncipe, mais dolorido o branco dos olhos da cadelinha, mais vermelhas as veias, mais gelada a pele.
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A Boca da Guerra
FantasyUma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...