Capítulo 96

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Coalim, Germon e Bojet ficaram em Tuen com Luc para supervisionar o fim da evacuação da cidade. Os outros voltaram a Chambert para revisar seus próximos passos na sala redonda com luz em forma de lanças.

A contadora de histórias entre duas janelas, ladeada por colunas de luz, Neville e Thaila à esquerda de Vivianne, o Eslariano à direita. O caolho, Menior e os dois soldados queimados também estavam lá. Frederico não havia voltado. Ninguém sabia onde ele estava. Em pé, na frente de todos, ao invés de Pierre, estava sua sombra, Gregoire. Os outros estranharam, esperando que Vivianne ou Neville liderasse a reunião, mas Gregoire se posicionou na frente de todos, tomando para si o lugar do meio-irmão.

— Henrique está escondido no Esmeralda — ele rabiscou num quadro negro um mapa da Franária e colocou uma flecha apontando para Debur, a sudoeste de Chambert. — Temos Fulbert vindo do norte. — fez um círculo com a legenda Boca da Guerra e um ponto entre a Boca e Chambert. — Pelos cálculos de Pierre, o exército de Patire deve estar por aqui. Acho que estava definido que Menior iria diretamente a Deran investigar o silêncio.

— Já teria partido, não fosse o incidente em Tuen — disse Menior. — Ontem mesmo chequei os pombos mensageiros (agora mortos) de Tuen. Ainda não havia mensagens de Deran. Não recebo notícias de Fulion há muito tempo. Mesmo com Fulbert em movimento, isto é incomum.

Gregoire colocou 'Menior — Norte' no quadro.

— Nada de novo aqui — disse.

— Na verdade — disse Vivianne. — Acho melhor eu ir com Menior.

O mensageiro enrugou a testa. — Eu viajo depressa.

— Farei o possível para acompanhar seu ritmo. Serei muito mais útil em Deran do que aqui. Não só eu garanto o apoio de Lune, como posso convencer Clément a agir.

— O rei Clément não tem poder algum — disse Neville. — Por que acha que ele nos ajudaria agora?

— Ele é um amigo — disse Vivianne. — Eu acredito que pode ser persuadido a fazer o que é certo.

Menior concordou com um movimento lento da cabeça.

— Se alguém tem chance de manipular Adelaide de Deran, esse alguém é Clément.

Gregoire colocou o nome de Vivianne junto ao de Menior no quadro.

— Capitão Neville, você vai a Debur enfrentar Henrique, certo?

— Não — disse Neville. — Sem Pierre e com a morte do capitão Gaul, sobramos eu e Vivianne para liderar Chambert. Se Vivianne vai para Lune, eu devo permanecer aqui.

Vivianne esticou as costas e lançou um olhar cuidadoso a Neville.

— Você sabe quem eu sou? — ela sussurrou.

— Sei — respondeu Neville. — Você é minha aliada. — Em voz alta, ele falou: — Thaila e o Eslariano foram líderes da revolução. Não precisamos enfrentar Henrique, só queremos trazer os guerreiros de Deran para Chambert.

Neville sabia que era cruel pedir àqueles dois que voltassem sozinhos ao palco de suas dores e derrotas, mas ele tinha aprendido na Boca que compaixão não vencia batalhas.

— Nós iremos — disse Thaila.

O Eslariano escondeu as mãos, que tremiam, e fez que sim com a cabeça.

— Certo — disse Gregoire. — Muito bem. Têm certeza?

Neville não gostou da pergunta. Existia um motivo para soldados nunca terem permissão de questionar seus superiores. Guerras são loucura. Guerras são horror. Dúvida é veneno. Questionar é morrer.

Gregoire continuou:

— Quanto a Fulbert, não há nada que possamos fazer.

Vivianne mastigou o lábio inferior.

— Há vilarejos e pequenas cidades no caminho de Fulbert — ela disse. — Ainda há tempo de trazê-los para Chambert.

— São centenas de pessoas, já temos de lidar com coisas demais — Gregoire começou a dizer.

— Tenho certeza de que podemos lidar com umas centenas de probleminhas a mais — disse Vivianne. — Luc, você pode supervisionar isso junto com Coalim?

Luc e Coalim assentiram.

— Então parece que temos tudo sob controle — disse Vivianne.

— Vocês se esqueceram de um detalhe — o Eslariano se pronunciou: — Vocês se esqueceram do dragão.

E Líran inclinou-se para a frente:

— Eu cuido dele.

Gregoire ficou na sala vazia, lembrando-se da sensação de estar frente ao futuro da Franária.

Eu posso liderá-los, escreveu em seu diário. Mesmo se Pierre não voltar —

Assustou-se com o último pedaço. Não apenas por ser ominoso, mas porque parte dele desejava que Pierre não voltasse. Pela primeira vez na vida Gregoire não estava na sombra de Pierre. Tinha voz fora de seu diário.

Sentia-se bem.

Sinto-me impelido a complementar com notas atuais as lacunas do diário que eu escrevia quando primeiro cheguei a Chambert. Antes de ser poeta, fui criança, mas meu irmão parece qua já nasceu adulto, jogando sombras sobre mim. Se eu algum dia escrevesse uma autobiografia, ela seria sobre Pierre.

Tudo fica mais transparente para mim agora que o tempo me distanciou da história. Como fui tolo. Acreditei que fui eu quem liderou aquela reunião, quando na verdade ninguém estava me ouvindo. Foram Vivianne e Neville quem decidiu tudo. Eu só fiz ficar em pé na frente deles.

Leio meus diários e vejo que fui uma daquelas personages das quais não se gosta muito. Infiltrei-me pelos parágrafos, implorando por uma linhazinha de atenção, perguntando-me, vírgula após vírgula, por que a história não havia escolhido a mim como personagem principal.

Imagine deparar-se com um fio de destino possivelmente liderando algo grandioso e mágico, e esse fio chega pertinho de você, mas se amarra ao seu irmão. Gosto de pensar que muita gente também se perguntaria: por que ele e não eu?

Assim, com essa simples dúvida, pertinente porém invejosa, eu me tornei a personagem que ninguém quer ler. O espinho da narrativa, provavelmente ignorado nos futuros livros de história, exceto, espero, como poeta.

Ouso dizer que, quando se é muito próximo de alguém, não importa quão extraordinária essa pessoa seja, para você ela será sempre comum. Você conhecerá defeitos que nem mesmo a própria pessoa sabe que tem. Por exemplo: a incapacidade de Pierre ficar parado. Uma parte de seu corpo estava sempre em movimento e ele tinha o irritante hábito de acariciar com o dedão as páginas do livro que estava lendo.

Parece pequeno, eu sei, mas experimente ler os grandes poetas satironeses ou, pior ainda, os gorgathianos, numa noite silenciosa com um dedo calejado se esfregando em papel arenoso ao seu lado. Era serra nos meus tímpanos.

Pierre tinha mania de ser o melhor em tudo. Talvez seja por isso que eu tenha me aferrado à escrita do jeito que fiz. Pierre, como eu, adorava ler, mas compor uma poesia, costurar uma bonita narrativa, por menor que fosse, isso ele não gostava de fazer. Livros em branco o aturdiam. Sentia-se desconfortável inventando histórias quando havia tanto livro bom no mundo com prosa melhor que a dele.

A verdade é que meu irmão não nasceu para escrever histórias, mas para fazê-las acontecer. Eu sempre me ressenti disso. Do poder cru dele. Ele sabia que eu me ressentia. O excepcional, ele me disse uma vez, não diminui o grande. E o grande não apaga o comum. Não há nada de errado em ser comum.

Ele tinha razão: não há mal nenhum em ser comum. Dito isto, experimente passar uma vida inteira ao lado de uma pessoa que, não importa o quando você se dedique e até mesmo sacrifique, fará tudo melhor do que você. Então talvez você entenda por que, apesar de todo o amor que eu tinha por ele, era inevitável que eu odiasse Pierre.

— Memórias de Gregoire (revisitadas)

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