Lencon estava vazia. Os corpos haviam sido enterrados, as pessoas sumiram. Lencon era um esqueleto de madeira fina. O escravo Esqueleto se confundia com as tábuas mortas da cidade fantasma. Ele poderia reinar ali, sentar-se num trono de palitos e ser vazio na cidade vazia. Mas Esqueleto não estava vazio. Podia não ter carne, mas os olhos tinham febre de vida ou morte.
— Onde estão os sobreviventes? — perguntou Manó. — Eles não tinham condições de viajar até os Saguões durante as tormentas.
Neville apontou para o sul. Tormentas haviam apagado a maior parte dos rastros, mas ainda era possível ver o mato pisado por dezenas de pés se arrastando embora.
— Para a Fronteira? — perguntou o Eslariano. — Ninguém na Franária faria isso de livre vontade. Nem Maëlle conseguiu entrar lá anos atrás.
— Eu entrei — disse Neville. — Meus homens entraram.
— Vocês são loucos e você empunha magia. Pessoas normais não entram na Fronteira. Olhe para ela. Pode haver cores ali, mas também o negro é mais poderoso. A Fronteira é a divisa entre nós e a Terra dos Banidos, mortais e mistérios. Trevas.
O Eslariano tinha razão. Ninguém na Franária pensaria em ir mais ao sul do que Lencon ou Anuré. No entanto, os rastros levavam à floresta antiga.
— Talvez o povo da Fronteira os tenha recolhido — disse Maëlle. — Eles estão entre nós. Lembre-se das cores.
Neville mandou que montassem acampamento, pois os escravos mais fracos não aguentariam seguir marcha, e seguiu o que restou dos rastros que saíam de Lencon. Precisava saber se os sobreviventes estavam bem. Precisava de pétalas ainda presas a flores. Pétalas soltas são poesia, mas murcham. Pétalas sem flor são livres, mas mortas. Neville estava cansado de pétalas.
Enquanto caminhava em direção à floresta antiga, vieram-lhe à lembrança as flores de Henrique. Aquela orquídea, a rosa, os pessegueiros. Que saudades ele tinha dos pomares do Esmeralda. Uma vez ele viu uma flor em Fabec. Mato crescendo no vão do mosaico quebrado da Casa Quadrada. Ao lado do sapo, aos pés da raposa. A própria flor parecia um mosaico, cercada assim por mistério em ladrilho. Púrpura, pequena, frágil. Cor.
Com a atenção voltada para o chão, Neville se aproximou da Fronteira. Percebeu quando entrou na sombra das árvores largas. A temperatura ali era outra, mas Neville não sabia dizer se era mais fria ou mais quente. Talvez não fosse a intensidade que mudava, mas a personalidade.
Temperatura com personalidade.
— Você de novo — disse uma voz.
Neville se endireitou, já com uma flecha na corda do arco. Um jovem estava à sua frente. Estivera ali desde o começo, camuflado pelas trevas da Terra dos Banidos? Ou havia se aproximado sem que Neville percebesse? As duas possibilidades assustavam. Tinha olhos cor de mel, o jovem; pele cor de cobre, mas um cobre diferente do eslariano. Mais fogo do que metal. Os cabelos, lisos e grossos, tinham cor de pedra vulcânica. Trazia uma espada às costas, com punho puído, cada uma das hastes da guarda representando um lobo, o copo dourado com uma árvore em baixo relevo. Pendurado à empunhadora havia um pingente de crina de cavalo tingido de verde. Uma espada satironesa. Neville nunca havia visto uma fora dos livros.
O jovem o estudava com igual intensidade. Será que nunca tinha visto um baynardiano fora dos livros? Vai saber que tipo de gente existia dentro da Fronteira. Neville havia lido que magia e trevas distorciam espaço e tempo. Talvez a Fronteira fosse tão vasta quanto a Franária, ou mesmo Sátiron, e o jovem tivesse viajado a vida inteira para finalmente sair dela.
Neville se afastou um passo. Fazia muito tempo que sua imaginação não se alastrava assim, inocente e viva. Foi um susto. O jovem ainda o estudava.
— Neville de Baynard — ele disse. — Herói ou vilão?
— Não existe herói nesta terra — disse Neville.
— Ah, um pessimista.
— Admire alguém e esse alguém vai te desapontar.
— Me parece que você tem admirado as pessoas erradas — disse o jovem. — Você foi a Anuré resgatar sua mãe. Me parece uma causa nobre. Por outro lado, você trouxe a guerra até aqui. Ela nunca tinha tocado o sul da Franária com morte sangrenta. Só morte lenta.
Neville baixou o arco.
— Eu fiz algo terrível — ele disse.
— Será?
— As mortes de Lencon. As de Anuré.
— Mortes — disse o jovem — não são novidade. Sobreviventes são.
— Onde eles estão?
— Nós recolhemos. Tivemos de arrastá-los. Eles têm mais medo da Fronteira do que da morte. Mas estão bem.
De repente, a imaginação de Neville não pôde mais se conter. Abriu asas de curiosidade e ele quis saber:
— É verdade que a Fronteira é tão treva quanto a Terra dos Banidos? É verdade que suas cidades não têm muralhas? Que existe um dragão?
— Muralhas não servem para nada contra os perigos que atravessam o Sangue — disse o jovem. — Preciso ir. Vou te considerar um herói, por enquanto. Por sinal — ele disse, já de costas, — meu nome é Pierre e o dragão existe.
Ele se afastou para dentro das trevas da Fronteira. Pareceu a Neville que duas pessoas o esperavam nas sombras. Um negro careca e alto, uma mulher com cabelos encrespados pelo vento. A mulher puxava pelas rédeas um cavalo preto e branco.
— Fulion? — murmurou Neville.
Mas as três sombras sumiram na escuridão entre as árvores e Neville voltou a Lencon, meio herói, meio vilão. meio confuso. Pensou ter visto, logo antes de dar as costas à Fronteira, a fluorescência de centenas de folhas de um verde muito claro num tronco de cinzas. Encontrou Manó no lugar onde ele havia matado o velho e o menino. Manó vasculhava o chão como se esperasse encontrar ali uma resposta. Neville não sabia qual era a pergunta.
Os escravos decidiram ficar nacidade. Nem todos aguentaram a viagem até ali e Neville marchava depressa.Somente três seguiram até Fabec: Maëlle, o Eslariano e o Esqueleto.
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A Boca da Guerra
FantastikUma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...