Fregósbor em pé numa superfície branca, fina, esfarelada como cal. Que lugar é este? Talvez não exista. Quem é ele? Talvez não deva existir. Que peculiar, esse não dever existir.
Ele olha para o alto, sentindo-se como navio em fundo de oceano. Ele é o navio. Ele é também o oceano. Lá fora, ele sabe, baila e canta uma tempestade. Por que ela não o alcança?
Fregósbor se movimenta, a branquidão ao seu redor se agita. Ele busca alguém que possa lhe dizer quem ele é. Yukari descendo o corredor de papel, animais de mármore dançando aos seus pequenos pés. Em breve ela subirá as escadas até onde se senta o mago envolto em teias de eras que não deveriam tê-lo conhecido. Quem é esse mago? Yukari tem o poder de acordá-lo, mas Fregósbor sabe que, assim que ela o deixar, mais uma vez ele afundará nas areias movediças de seu próprio esquecimento.
Ele não responde quando Yukari toca seu ombro. Precisa de mais do que consciência momentânea. Precisa descobrir quem é.
Avista algo negro no horizonte empoeirado. Vai na direção do ponto preto, que cresce, cresce, vira um manto, capuz sem rosto.
— Uma vez mais você me puxa para seu sonho — diz Sáeril Quepentorne. — Como se sente hoje?
— Você sabe quem sou?
— Sei.
— Diga-me.
— Posso dizer-lhe seu nome, mas você não é seu nome — diz o Vulto. — Posso contar sua história, mas você não é uma história.
— Um nome é um começo.
— O seu é Fregósbor.
— Eu sei — diz Fregósbor um pouco espantado.
— Você também sabe quem é. Precisa apenas lembrar.
— A resposta está dentro de mim?
Sáeril quase confirma, mas detém-se. Agora que Fregósbor levantou a questão, o Vulto hesita. Conterá Fregósbor a resposta? Sáeril olha em volta, para o vazio empoeirado, farelos de memórias, ruínas. Isto não é Fregósbor: é o que Fregósbor devia ser. Pó.
— Você está aqui — diz Sáeril. — Mas quem você é está lá fora. Se quer acordar e ser presente, é preciso encontrar quem você é.
— Como?
— Precisa de um meio para conectar-se a si mesmo.
— Pode ajudar-me a encontrar o caminho?
— Eu só posso encontrar o caminho para mim mesmo. — Coloca uma mão enluvada sobre o ombro de Fregósbor. — Siga o seu nome quando ele for chamado. Encontre um propósito, uma razão para existir. Se você encontrar um lugar na existência, é possível que encontre quem é.
Um papel na existência. Fregósbor olha em todas as direções, as ruínas de seu passado esfarelando sob seus passos. Um vago borrão de mundo o envolve, mas desaparece quando ele se concentra. Onde encontraria um papel, um motivo?
Aonde foi seu nome? Não importa. O que importa é de onde o nome veio.
Um arco negro satironês parado em pé no branco esfarelado. Fregósbor o alcança. Lembra-se de ter sonhado com ele antes. Uma mão de pele negra surge segurando o arco. Da mão brota um braço, um tronco, rosto negro de um sonho anterior. O arqueiro o chama pelo nome. Fregósbor.
— A História está aqui — diz Neville. — Ela se chama Pierre.
— Pierre — murmura Fregósbor.Agora ele tem de perseguir dois nomes.
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A Boca da Guerra
FantasíaUma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...