Uma borboleta pousou no ombro de Neville. A luz inclinada de primavera já estava engordando em verão, o zumbido de insetos visitando flores, morrendo nos bicos de passarinhos de peito amarelo, azul e branco. A borboleta no ombro de Neville era verde, muito pálida. Quanto tempo havia se passado desde que Neville deixou Fabec? Sua mãe e o Eslariano, onde estavam? Em Debur? Thaila estaria ainda com Olivier? Morta?
A borboleta não era uma borboleta, era uma folha. Pelo vão entre duas tábuas da cabana, um galho negro se infiltrou e com ele a manhã. O jovem Gregoire da Fronteira roncava. Até o ronco dele era suave e fino. Do lado de cá, o Cinzento se esfarelava pendurado na realidade pela haste negra que Neville tinha amarrado no braço; o Vulto continuava desfalecido.
Neville cutucou Gregoire. — Preciso ir a Tuen.
— Amanhã — gemeu Gregoire.
— Já é manhã.
Neville ergueu o Cinzento pelo cangote, feito filhote de gato. Gregoire pulou em pé antes de sofrer o mesmo destino. Sáeril não acordava.
— Vamos ter de carregá-lo — disse Neville. — Pegue as pernas.
Os pés de Gregoire escaparam para longe. O Cinzento tentou ajudar, mas as mãos de cinzas não tinham força. Neville estalou a língua, ergueu o mago sozinho. Colocou nos braços a força necessária para levantar um homem e quase jogou Sáeril para longe. O mago não tinha peso. Na noite anterior, quando Neville o amparou, tinha consistência de corpo. Hoje, parecia haver só manto, com uma armação de galhos secos embaixo. Neville ficou com medo de quebrar os galhos secos e passou com muito cuidado pela porta da cabana, colocou com gentileza o mago na parte de trás da carroça de Gregoire. Ele atrelou as duas mulas enquanto Gregoire tremia na soleira da porta.
— Está assustado por quê? — perguntou Neville.
— Bem, sabe, não estou acostumado a ser acordado assim, tão bruscamente, muito menos a ser arrastado para a estrada, ainda por cima sem café da manhã.
— E eu não estou acostumado a esperar. Podemos comer no caminho.
— Mas é tão melhor comer parado.
— Quer ficar, fique. Eu vou levar Sáeril a um lugar seguro.
— Pensei que precisasse ir a Tuen.
— Este mago salvou minha vida. Nossas vidas — apontou para o Cinzento. — Você vem também.
— Você parece gostar muito de minha companhia — disse o Cinzento.
— Estamos presos um ao outro — Neville apontou o galho negro amarrado ao braço do Cinzento, que seguiu a haste até encontrar o tronco da árvore negra.
Durante a noite, a árvore havia enraizado ao redor da cabana, parte da raiz abraçava as tábuas, parte estava fincada no chão. Gregoire, que ainda estava na soleira da porta, inclinou a cabeça para ver o que Neville estava apontando. Assim que viu a árvore enrolada feito aranha na cabana, ele saltou para a boleia da carroça.
— Esse tipo de árvore não é comum na Fronteira? — perguntou Neville.
— Não — sussurrou Gregoire. — Ela é única.
Neville pensou que o povo da Fronteira estaria acostumado à escuridão além Sangue, mas Gregoire estava apavorado com a árvore. Na verdade, Gregoire não era exatamente o que Neville esperava de alguém da Fronteira. Aquele outro, aquele Pierre, sim: com pele escura avermelhada de um tom que Neville nunca tinha visto antes, com uma espada satironesa às costas, mais silencioso que o vento, capaz de pegar Neville de surpresa.
O homem cinzento parecia concordar com Neville, porque disse a Gregoire:
— Você não é exatamente o que eu esperava encontrar na Fronteira.
— Você sabe o que é essa árvore? — revidou Gregoire. — Morte. Quando ela nasceu aqui na Fronteira, uma vila inteira foi devastada.
— A árvore destruiu a vila? — perguntou Neville.
— Não sei — disse Gregoire — só sei que foram trevas.
— Trevas é um termo muito vago — disse Neville.
— Pois nem sempre conseguimos ver a forma que elas tomam — disse Gregoire — ou a criatura que nasceu delas. Às vezes corpos amanhecem onde havia um vilarejo e há rastros de volta para o Sangue. Rastros de nada que se conheça. Às vezes, nada amanhece onde havia uma cidade e não há rastros. Piorou agora que o dragão foi embora.
Gregoire apontou para a árvore.
— No dia em que toda a população de Lenás morreu, essa árvore germinou. Isso foi há muito tempo, antes de eu nascer. Lenás foi reconstruída e a árvore ficou à deriva nas nossas matas. Nunca vi ela chegar tão perto de gente antes.
— Ela deve gostar de você — o Cinzento disse a Neville — por causa de toda a morte que você causa.
Mas Neville se lembrou de muito tempo atrás, quando a mãe dele voltou do sul falando em cores e uma árvore de galhos pretos. A árvore estava me olhando.
Se apenas morte movesse aquela árvore, porque a mãe de Neville a atraíu? Talvez a mãe tivesse se enganado, mas até agora, todas as coisa que Maëlle disse provaram ser verdade.
O Cinzento cutucou o braço onde a haste negra estava amarrada, subiu na boleia e se sentou ao lado de Gregoire. Ele se movia com esforço, como se andasse contra um vendaval. Neville subiu na parte de trás, com o Vulto.
— Gregoire da Fronteira, leve-nos para um lugar seguro, onde eu possa deixar este mago.
— Não existe mais lugar seguro na Fronteira — disse Gregoire, tocando as rédeas.
— Na Franária também não — murmurou o Cinzento.
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A Boca da Guerra
خيال (فانتازيا)Uma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...