Um soldado sozinho chegou a Fabec vindo de Debur. Ele tinha um corte na testa que ainda não havia terminado de cicatrizar. O soldado se chamava Manó.
Dois tipos de gente eram mandados a Fabec: os sorteados e os julgados. Os reis e rainhas anteriores a Henrique enforcavam e esquartejavam em praça pública, mas Henrique não gostava de violência, do fedor dos corpos, dos abutres. Além disso, Maëlle disse que a pena de morte tinha sido extinta por Sátiron, antes da Guerra. Então Henrique fez um discurso comovente sobre os valores satironeses, sobre evolução e humanidade. Mas ele não extinguiu a pena de morte; ele simplesmente lhe deu outro nome: A Boca da Guerra. Os condenados por crimes hediondos eram enviados a Fabec para morrer na Boca.
Manó atravessou os portões de Fabec e foi levado à Casa Quadrada, onde o capitão Neville tinha um escritório pequeno e limpo, com escrivaninha, duas cadeiras e uma janela por onde entrava um filete de luz cinza que não se dispersava, mas caía em bloco no chão de tábuas. Manó foi um dos treze recrutas que se ajoelharam no pátio do Esmeralda junto com Neville e Robert no dia em que o dragão verde de Lecoeurge ficou vermelho na Tenda dos Artistas. Manó também estava na plateia naquele dia. Ele viu o dragão mudar de cor. Não foi de repente, como um raio que rasga o céu sem mudar nada, mas também não foi lento como uma troca de roupa. O dragão mudou de cor como se Manó tivesse erguido uma lente colorida na frente de um olho e fechado o outro. O dragão foi a coisa óbvia, impossível de notar, mas o mundo inteiro ficou atrás daquela lente.
Continuava assim até hoje. Manó sabia, como todo mundo sabia, que magia tinha acontecido ali. Ele saiu da Tenda dos Artistas com pernas moles, pés que não acreditavam na solidez do chão em que pisavam. Mais de uma vez Manó se perguntou se a Terra dos Banidos não foi uma bênção, se o fim de toda aquela tecnologia feiticeira não foi um tipo de salvação. As coisas terríveis que podiam acontecer: olhe só para Leonard Acidentado. Quatrocentos anos depois do fim da feitiçaria alguém ainda levava sequelas de um acidente acontecido a um antepassado.
Manó ficou em posição de sentido. O capitão Neville estava dentro do bloco de luz cinza, as paredes atrás dele tinham descansos para tochas, mas do teto pendia um intricado lustre de ferro com buracos rosqueados para lâmpadas. Havia até uma lâmpada coberta de pó mais cinza do que a luz da Boca da Guerra.
Quando Manó entrou no escritório, percebeu surpresa no capitão. Foi uma surpresa momentânea, pela qual Manó sentiu uma pontada de gratidão. Neville não achava ele capaz de cometer um crime hediondo. Manó pensou em não mostrar a carta de Henrique, fingir que ela havia se extraviado, levada embora pelo vento, mas Neville estendeu a mão e Manó entregou o pedaço de papel com sua condenação.
No papel estava escrito apenas que Manó tinha sido julgado e condenado pela morte de treze civis. A carta dizia que a culpa era dele, mas não contava o que tinha acontecido; não contava dos panfletos que surgiram depois que Neville foi embora. Grudados em paredes e vigas, correndo as ruelas feito ratos procurando sombra. Manó pegou um deles, mas não sabia ler. Ele procurou um dos soldados letrados, Robert, que reuniu todos os guerreiros curiosos e traduziu o panfleto. As letras grandes e vermelhas diziam, 'HENRIQUE TRAIDOR'. As pequenas contavam que o rei havia traído seu antigo capitão, revelando seus planos a Patire. Mais do que isso, o panfleto dizia quais eram esses planos. Até então, ninguém sabia direito o que havia acontecido na Batalha da Ponte, onde o pai de Neville perdeu as pernas. O panfleto contava dos planos de invasão do capitão, de construir uma ponte até Patire, mas que Fulbert sabia sua localização.
— Boatos — gritaram uns.
— Verdades — gritaram outros.
Manó não sabia dizer se o panfleto era verdadeiro ou falso. Os fatos todos encaixavam e Henrique, quando soube o que os panfletos diziam, não saiu do Esmeralda por uma semana. Percorreu o espaço entre seu quarto e sua estufa, carregando o panfleto sempre consigo, embora ele também não soubesse ler. O que significava aquele silêncio? Culpa?
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A Boca da Guerra
FantasyUma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...