Capítulo 109

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Como um fantasma de muito tempo atrás, Fregósbor perambulou pelas muralhas de Chambert. Sentiu-se enferrujado, acreditou-se incapaz de colocar em uso sua magia enrugada e sua ciência empoeirada. Gradualmente, conforme caminhava e enxergava cada vez mais longe em todas as direções, Fregósbor se recordou. Observou, primeiro de muito longe, então mais e mais próximos, como se colocados em foco por um telescópio, os filamentos da realidade e as pinceladas de sonhos dentro e ao redor de Chambert. Um amarrando o outro tingindo o um. A fronteira entre um e outro, uma coisa delicada e simples de transpor: a mente.

Os sonhos franeses estavam pesados com trevas oleosas. Poluíam, ao invés de colorir, os tecidos da vida, tornando as realidades grosseiras e ásperas, como panos velhos gastos prontos a romper. Realidade e sonhos grudados um no outro, afundando um ao outro, aprisionando. As cores dos sonhos, envelhecidas e esmaecidas, haviam se secado e rachavam como tinta fungada.

Com dedos gentis, Fregósbor trabalhou aquela tinta rançosa. Magia não pode derrotar trevas, assim como água não pode derrotar óleo, mas se manipulada com jeito, pode afastar um pouco as trevas de forma que outra força deslize por ali e desfaça a poluição. O problema era lidar com as realidades quebradiças de forma a não rachá-las ainda mais. Fregósbor nunca foi bom com realidades. Ele era, afinal, Mestre dos Sonhos.

O sol se pôs num horizonte límpido, puxou o cobertor noturno sobre a Franária. A lua sorriu de lado e estrelas começaram a piscar sonolentas. Havia muitas delas no céu este dia, piscando, esperando.

Pierre viu lá em cima a lua emoldurada pelas seis paredes do jardim escondido, atravessou o painel de lobos até o gramado onde ninguém o esperava. Luz dourada, mais fraca que a de uma estrela distante, tremelicava através da janela no topo da torre de Fregósbor. A coluna de pedra maciça pesava ameaçadora no gramado noturno, pretejando um pedaço de céu, tapando as estrelas e arremessando uma sombra nevoenta sobre Pierre.

Pela primeira vez, Pierre abriu a porta para a biblioteca de cartas não lidas. Eram tantas! Mais páginas do que estrelas no céu. O chão de mármore, ele não percebeu, nem os animais, que se afastaram para ele passar. O tempo todo ele virava a cabeça, de um lado a outro. Tantas cartas. Para quem? Seriam todas da mesma pessoa, para a mesma pessoa? Por que ninguém as lia? Era seu destino empoeirar ali, nas sombras, eternamente sem resposta?

Fregósbor encontrou Pierre chorando no meio do corredor de papel.

— Que cartas são estas? O que fazem aqui?

— Elas não são para mim. Venha. — Pegou Pierre pelo braço como quem guia um cego. Levou-o de volta para a porta que havia acabado de cruzar, mas ao invés dos aposentos de Yukari, havia ali um mundo sem chão. Pedaços de madeira, algodão e ferro flutuavam no vácuo pastoso, detritos.

Fregósbor pisou na escuridão, Pierre seguiu-o com cuidado. Não caiu, mas também não conseguiu ficar em pé.

— Equilibre-se — disse Fregósbor.

— Não tem chão.

— Há muitos chãos.

— Não sinto nenhum.

— É porque não são sólidos.

— Como vão me aguentar, então?

— Sonhos podem não ser sólidos, mas são muito reais. Você recentemente caminhou pela realidade em corpo de sonho, agora eu te trouxe real para o reino adormecido. — Fregósbor fez um gesto amplo com os braços. — Estes destroços todos que você vê são sonhos que precisamos remendar. Você precisa restaurá-los, antes que eles roam as cordas da realidade, como ratos.

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