Vivianne entrou sozinha no túnel. Príncipe Clément implorou que ela voltasse, mas Vivianne mergulhou na escuridão. Normalmente ela segurava a mão dele e carregava uma lanterna. Os dois gostavam de explorar a Pedra juntos. Ou melhor, Vivianne gostava de explorar e Clément gostava de ir com ela. O castelo real de Deran ficava na face sul de uma montanha negra, que destoava na paisagem deraniana, ondulante e verde, com cânions azulados e águas transparentes de tão geladas. Mesmo a Onda, muito mais alta que a Pedra, tinha um tom azul esbranquiçado, frio. Dava a impressão de ser delgada, apesar de Vivianne só enxergar uma face da cordilheira. Delgada e flexível, mas ao mesmo tempo inquebrável.
— Não me deixe aqui sozinho — chamou Clément.
Vivianne estava brava com ele. Eles brigaram tanto, que ela esqueceu de pegar uma lanterna. Ao invés disso, ela agarrou uma vassoura, arrancou o cabo e foi tateando com ele o chão na frente dela.
— Se a Pedra ajudasse a defender Deran de Farheim e Inlang — ela tinha gritado — menos gente morreria.
Ela e Marcus haviam feito a ronda pelas saias da Onda com duzentos soldados. Foi a primeira vez que Vivianne acompanhou o irmão. Lune era a única coisa defendendo a Franária do norte. Mas Deran era ampla e a Onda tinha milhares de veios por onde invasores nórdicos podiam descer até as ondulações verdes entre a Pedra e Lune. Muitas vezes, durante as rondas, os soldados de Lune chegavam a um vilarejo onde só moravam cadáveres.
Clément tinha dez anos de idade. Ainda não havia sido coroado rei. Vivianne também tinha dez anos de idade. Ela era mestra de Lune assim como Marcus, seis anos mais velho. Naquela idade, Vivianne não entendia por que Clément não fazia nada. Ela não sabia a diferença entre crescer protegido pela rainha Adelaide e crescer ao lado do Vulto. Nem mesmo Clément entendia essa diferença. Aos dez anos de idade, mal se enxerga o próprio mundo, quanto mais o mundo da criança ao lado.
Anos mais tarde, Clément continuaria protegido pela mãe, mas encontraria um meio de forçar Adelaide a enviar soldados para fora da Pedra. Aos treze anos de idade, o rei começou a fugir de casa e a mãe era forçada a vasculhar toda Deran para encontrá-lo. Não seria mais necessário. Dentro de um ano, Farheim e Inlang não seriam mais problema. Mesmo assim, Clément fugiria. Talvez por isso mesmo ele fugisse. Quando os dois fizessem treza anos, Vivianne se perguntaria se seu amigo e rei teria coragem de se aventurar pelos cânios escondidos se Farheim e Inlang ainda ameaçassem Deran. Ela chegaria a perguntar para ele, mas Clément diria:
— Não sei.
Esquecer a lanterna foi descuido. Mesmo aos dez anos de idade, Vivianne não cometia descuidos. Ela culpou Clément por isso também. Se a Pedra ajudasse Lune a combater Farheim e Inlang, Vivianne não teria sentido aquele cheiro.
Poucos meses antes ela ouviu Marcus e o Vulto conversando.
— Você acha que devo levá-la comigo? — perguntou o irmão de Vivianne. — As coisas lá fora às vezes são horríveis.
— Você quer protegê-la? — perguntou o Vulto.
— Ela é uma criança.
Na época desta conversa, Vivianne tinha nove anos. Eles estavam na biblioteca e não notaram Vivianne desenhando mapas de Lune no chão, atrás da estante.
— Você tem quinze anos — disse o Vulto.
Vivianne não conseguiu interpretar o tom de voz dele. Por que dizer uma coisa óbvia daquelas? O Vulto continuou:
— Você quer proteger sua irmã, no entanto esconder não é o mesmo que proteger.
— Mas expor Vivianne aos mortos — Marcus não soube terminar a frase.
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A Boca da Guerra
FantasyUma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...