Quando Vivianne acordou novamente, Coalim estava sentado ao lado da cama. Vivianne esticou a mão para ele, mas a dor na perna ancorou ela no lugar. Ele se endireitou, mas continuou de lado para ela.
— Coalim, você está vivo. Quem mais? Alguém mais?
— Clément — disse Coalim — e dois soldados. Havia mais um, mas ele morreu no caminho, foi enterrado na estrada.
— Clément está aqui? — perguntou Vivianne. — Onde é aqui?
— Estamos numa estalagem chamada Pluma, em Tuen. Clément está na Pedra.
Tuen?
— Como viemos parar no meio de Baynard? — perguntou Vivianne. — Alguém sabe quem eu sou?
— O povo da Caravana sabia e Pierre pediu para eles manterem segredo. Rimbaud conversou com todos eles e até agora não vi indícios de que alguém daqui sabe quem você é.
— Precisamos voltar para Lune. Onde está a Caravana?
— Você quebrou a perna em três lugares e teve uma concussão. Precisa se recuperar antes de tentar se mover. A Caravana só veio até aqui a pedido de Pierre, porque Tuen era mais próximo do que Lune e nós precisávamos de cuidados médicos.
Vivianne nunca viu Rimbaud desviar a caravana a pedido de ninguém.
— Pierre salvou a Caravana — disse Coalim. — Eles viram o dragão atacar nosso acampamento. Não sobrou nada além dos poucos que estávamos junto com você.
— A magia do Vulto me protegeu — ela disse.
— Então o dragão viu a Caravana e avançou para eles. Líran, você não quer contar o que aconteceu?
Só então Vivianne percebeu a contadora de histórias em pé atrás de Coalim. Ela estava imóvel e parecia uma sombra. Usava na cabeça um chapéu roxo com uma margarida de enfeite, igual ao chapéu que o palhaço sem braços da Caravana usava quando Marcus e Vivianne o convidavam para cear no castelo. Antes que Vivianne pudesse comentar o chapéu, a voz de Líran transformou o quarto em estrada e centenas de pessoas corriam, cavalos relinchavam e tentavam se soltar dos arreios. Uma carroça capotou e os cavalos esperneavam apavorados porque lá na frente havia fogo e do fogo surgiu um dragão. De asas fechadas o dragão correu pelo chão, um relâmpago vermelho sobre o verde de Deran.
Vivianne também quis correr, mas neste momento ela viu um homem. Parecia se mover mais devagar que todas as outras coisas, o olho de um furacão. Esse homem andava na direção oposta dos que corriam; ele andava em direção ao dragão.
Quando dragão e homem se encontraram, o dragão brecou de súbito e abriu as asas de plumas tão brancas que cegavam. O homem era minúsculo, mas a voz dele chegava até Vivianne, embora ela não entendesse as palavras. O dragão rugiu, se retorceu e levantou voo.
O caos ao redor de Vivianne aos poucos se amainou. O medo continuou acelerando corações, cavalos ainda gritavam, gente ainda chorava, mas o homem veio voltando e as respirações foram acalmando até que reinou um profundo silêncio. O homem estava à frente da Caravana.
— É ele — disse Vivianne. — O mesmo que eu vi na outra história, com o lobo cinzento.
— Ele se chama Pierre — disse Coalim.
— Mestre Rimbaud, — disse Pierre na história — com sua permissão eu gostaria de montar um grupo de busca — apontou para o acampamento de Clément. — Pode haver sobreviventes.
— Quando Pierre chegou ao local, encontrou a rainha Adelaide — disse Coalim. Vivianne se lembrava que Adelaide já estava a caminho. — Assim como a Caravana, ela presenciou o ataque e correu para procurar o filho.
Coalim não precisou dizer mais nada. Vivianne conhecia Adelaide. Ao ver o filho em perigo, a rainha resgatou apenas ele e deixou os outros para trás. Por isso a Caravana teve de recolher Vivianne, Coalim e os soldados. Por um momento ela ficou furiosa, então ela pensou na fúria que Marcus sentiria.
— Há quanto tempo estou aqui? — ela perguntou. — Preciso avisar meu irmão que estou bem.
— Pierre enviou uma mensageira a Lune — disse Coalim. — Você a conhece e eu também, mas eu não sabia quem ela era de verdade. Aquela mulher, a que vende livros e tem um cavalo malhado que não gosta de ninguém.
Vivianne também não se lembrava do nome da mensageira que vendia livros. Não perdeu tempo tentando recordar, tinha problemas mais imediatos com que lidar. Nunca estaria segura em Baynard. Além disso, ela colocava em risco a vida de Coalim e dos outros dois sobreviventes. Ela tinha de ir embora e a forma mais segura de fazer isso era pegar carona com a caravana novamente.
Ela abriu a boca para perguntar a Coalim onde estava Rimbaud, mas nesse momento ele se levantou, virou de frente para ela e Vivianne ficou de boca aberta, sem voz. Metade de Coalim estava queimada, derretida por fogo com a pele arreganhada, metade da cabeça descoberta, a outra metade ruiva, parecia um mapa de pergaminho amassado. Ele ergueu os ombros.
— Estou vivo e sei que Clément também sobreviveu.Com um pouco de sorte, ele se queimou menos do que eu.
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A Boca da Guerra
FantasyUma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...