A viagem foi muito mais fácil do que Menior esperava e, sem incidentes, Neville, Gregoire, o Cinzento, o mensageiro e a árvore avistaram Tuen.
— Deve ser a árvore — disse Menior. — A floresta gosta dela.
Vista de longe, muralhas abraçadas pela luz do sol, Tuen remetia à sua glória imperial. Era fácil imaginá-la como foi em seu ápice, ruas largas, palácios erguidos em diferentes estilos, embaixadas para diferentes nações do império. Agora os palácios haviam ruído, quase todos esfarelados em matéria-prima de casinhas práticas.
No leste da cidade, perto da muralha, havia uma pousada antiga, porém bem cuidada, com flores brotando nas janelas. As venezianas precisavam de pintura, mas mantinham seu charme imperial. Esta pousada era a Pluma. Uma casa alta e comprida de pedra sustentada por grossas vigas de madeira ligeiramente vergadas. As paredes inchavam para fora, um grande bolo de creme derretendo sobre a rua.
Neville, Gregoire, Menior e o Cinzento encontraram uma multidão na Pluma. Tuen inteira parecia estar ali. Tanta gente, que vazava para a calçada, a rua, a outra calçada, envolvendo a pousada num abraço de mil mãos. Uma voz única, grossa, sussurrante ininteligível, dominando rua e prédio. Às vezes um nome escapava da massa densa de incontáveis vozes: Pierre.
Neville não soube dizer o que fez as pessoas abrirem passagem para eles: se o cinzento tenebroso, se Gregoire e Menior com vestes da Fronteira, se ele mesmo com cinzas da Boca e o arco negro às costas. A árvore ficou do lado de fora da muralha. Ela não gostava de cidades.
Um jovem de pele vermelha abriu caminho pela multidão e chegou até Gregoire.
— Irmão — disse Pierre. Ele cumprimentou também Menior e Neville, chamando-os pelos nomes, mas lançou um olhar interrogativo ao cinzento.
— Nossos caminhos estão ligados — disse Neville.
— Imagino que sim — disse Pierre. — Sejam bem-vindos a Tuen. Tivemos uma tragédia recentemente. Perdi um amigo e Tuen perdeu um bom prefeito e dez soldados.
— Muito trágico — murmurou o cinzento, abrindo os braços para a festança na Pluma.
— Não é a tragédia que eles festejam — disse Pierre. — Na verdade, eu mesmo não entendo muito bem o que estamos festejando.
— Pierre, — disse Neville. — Olivier está em Tuen?
— Fugiu.
— Ele levou uma mulher? Uma mulher com traços eslarianos?
— Não — disse Pierre. — Thaila está aqui na Pluma.
Neville teve um fluxo de sentimentos e eles devem todos ter transparecido em seu rosto porque Pierre colocou a mão no ombro dele e disse:
— Venha, eu te levo até ela.
Neville seguiu Pierre pelas escadas, subiu o túnel de degraus, emergiu acima das vozes. Virou à esquerda, hesitou em frente à porta que Pierre indicou.
Lá dentro, Thaila, salva, não por Neville, mas por Pierre, das garras de Olivier, o homem sem presas. Neville também não tinha presas. Tinha vergonha.
Bateu à porta.
— Entre.
Entrou.
Não era um quarto. A um canto, uma estante com poucos licores, três garrafas de vinho empoeirado. À janela, uma jovem delgada com o aspecto feérico de raio lunar tracejava sobre um bloco de papel. Sobre uma mesa patinavam cartas. Quatro jogadores. Dois deles deformados por queimaduras. Um ainda tinha cabelos. As queimaduras despontavam por debaixo das mangas da camisa, engarravam as mãos, trepavam do peito, como hera venenosa, pelo pescoço, até a orelha derretida. O outro tinha mais queimaduras na cabeça, nenhum cabelo, nem cílio. A pele, e talvez o osso que um dia ostentou a sobrancelha direita, derreteu por cima do olho azul, quase tapando a íris.
Mas o que horrorizou Neville foi o Eslariano todo quebrado, braço esquerdo pendurado ao pescoço, o rosto, um hematoma inchado. Não conseguiu se levantar, estendeu o braço bom para Neville.
— Maëlle prometeu que você voltaria. Confesso que duvidei.
Neville pegou a mão do Eslariano como quem pega uma tacinha de cristal.
Thaila, a quarta jogadora, apoiou-se na mesa. Neville tentou impedi-la de se levantar, mas ela não se deixou deter. Colocou dedos quebradiços nos ombros dele. Os olhos de Thaila haviam se afundado nos sulcos de seu crânio, a pele pendia dos ossos. Tantos ossos. Thaila lembrava o Esqueleto de Anuré.
Ela percebeu o horror de Neville, deixou escorregar os dedos, primeiro para o peito dele, para prorrogar o momento relutante em que quebrou o toque.
— Me recusei a comer — disse.
Ele capturou as mãos fragilizadas antes que caíssem ao longo do corpo dela. Trouxe-os de volta para o próprio peito, então puxou Thaila inteira de encontro a si. Apoiou o queixo na cabeça dela.
— Sinto muito — ele disse.
Thaila não sabia se ele se desculpava por ter se horrorizado com a magreza dela, por não ter estado lá quando Olivier foi buscá-la em casa, por não ter estado lá quando ela e Robert se rebelaram contra Henrique. Por não ter estado lá.
A vida inteira Thaila quis sentir aqueles braços negros ao redor de seus ombros. Sonhou acordada com as mãos grandes espalhadas em suas costas: vestidas, nos sonhos de infância; despidas em sonhos maduros. Mãos de calos, de arqueiro, ásperas, despertando a pele com suave atrito, que correriam na ponta dos dedos para os ombros, pescoço, queixo, talvez até chegassem aos lábios, mas os lábios aguardavam a fricção macia dos de Neville, e o encontro de bocas, nos sonhos de Thaila, gerava pequenas labaredas que nadavam como girinos até o dedão do pé e de volta à nuca.
A vida inteira, e lá estava ela finalmente nos braços dele. A vida inteira, e tudo o que ela conseguiu dizer foi:
— Robert está morto.
— Eu sei — disse Neville.
— Onde você estava?
— Ele foi a Anuré nos salvar — disse o Eslariano. — A mim e a Maëlle, eu já te contei. Mas depois — ele virou-se para Neville. — Por que você foi para o sul? Procurava o dragão? Ia morrer, você sabe.
Thaila empurrou o peito de Neville com uma força que não deveria caber naqueles braços desnutridos.
— O único dragão de nossas vidas nunca saiu de Debur — ela disse. — Ele continua no Esmeralda.
Neville pegou a mão dela e a mão do Eslariano. Apertou-as entre as suas num sanduíche de dedos.
— Eu sei — ele disse. — Eu sei.
Um dos homens queimadossuspirou. Pelo visto teriam de interromper a jogatina.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Boca da Guerra
FantasíaUma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...