Vivianne colocou o desenho no colo do pai. Ficou esperando uma daquelas palavras que ele sempre expelia, com a mão espantada na frente da boca, incrível, excepcional e a favorita: estupendo.
Desta vez, ele não disse nada. A mão grande amassou a carne saliente debaixo do queixo, a testa se remodelou em montes e saliências. Ele estava tentando inventar uma nova palavra ou não tinha gostado do desenho? Vivianne ficou na ponta dos pés e estudou o próprio desenho sobre as pernas do pai. Ali estava Lune, do jeito que ela enxergava o castelo. Ela nunca havia feito um desenho tão grande. Teve de juntar vários papéis para prolongar o espaço em branco de forma a fazer caber todo o castelo em um único desenho. Para isso, ela havia costurado as folhas, do jeito que viu Marcus fazer toda vez que o irmão montava um caderno novo para Vivianne.
Ela imaginou que o pai se impressionaria com o fato de ela ter aprendido sozinha a costurar papel, sem destruir a folha.
— Ela tem quatro anos de idade — ele costumava dizer, estufando o peito e mostrando os feitos artísticos de Vivianne. Do jeito que ele falava, ter quatro anos de idade parecia uma coisa excepcional. Ou melhor: estupenda. Vivianne tinha medo de seu próximo aniversário. Será que cinco anos era tão impressionante quanto quatro?
— Veja as coisas que ela já sabe falar — o pai dançava com a filha nos ombros e Vivianne proferia palavras engraçadas.
— Estupendo, excepcional, improvisar, manopla, geringonça — disse Vivianne e o pai rodopiando. — Farheim, Inlang.
Por que o pai parou de dançar? As mãos grandes cobriram as perninhas de Vivianne num abraço rechonchudo. Os ombros dele caíram um pouco e Vivianne perdeu altitude.
— Você deve ser a única criança de quatro anos em Deran — disse o pai — aliás, em toda a Franária, capaz de falar essas duas palavras corretamente. — Mas Vivianne não sentiu a vibração de um estupendo na frase do pai.
Ela colocou essas duas palavras na lista de coisas que tiravam altitude. Farheim e Inlang. Ela ainda não sabia direito o que eram. A primeira vez que as ouviu foi no dia em que a mãe não voltou a Lune. Vivianne tinha então dois anos de idade e não sabia o significado de Farheim, Inlang ou Nunca mais.
O desenho no colo do pai não havia puxado os ombros dele para baixo. Não houve perda de altitude. Mas as linhas na testa também não escreviam estupendo. Aliás, não escreviam nada de bom.
— Quem foi que te mostrou isto? — o pai apontou para uma parte de Lune em que Vivianne nunca havia entrado.
Ela não entendeu a pergunta. Por que alguém tinha de mostrar qualquer coisa para ela? O desenho estava ali, no traço dela, foi ela quem fez.
— Vivianne, quem te levou aos calabouços?
— Que calabouços? — Mais uma palavra nova.
O pai apontou de novo o desenho:
— Aqui. Quem te trouxe aqui?
Vivianne continuava não entendendo. Ela nunca havia estado fisicamente naquele pedaço de Lune.
— Não quero que você vá aos calabouços — disse o pai. — Eu os tranquei por um motivo. São lugar de tortura e horror. Não quero que você vá lá.
— Mas eu não fui.
— Então como foi que você desenhou isto?
A pergunta não fazia sentido. Ela desenhou porque aquilo existia.
— E como você sabe que isso existe?
Aquilo tinha de existir para Lune ficar completa. Da mesma forma com que Vivianne conseguia enxergar um pé sem ter de tirar um sapato, ela via o todo de um castelo sem ter de visitar ele inteiro. Era lógico que houvesse alguma coisa ali onde ela desenhou aquele espaço desconhecido. Não sabia que se tratavam de calabouços, mas sabia que tinha de ter algo ali para o castelo ficar completo. Ela não soube explicar nada daquilo. Vivianne ainda era mais instinto do que lógica e não entendeu que o pai não era capaz de ver as mesmas coisas que ela. Ele não conseguia visualisar um pé sem antes tirar o sapato.
— Vou fazer a ronda pelas Ondas — disse o pai. — Quando eu voltar, você vai me dizer quem te levou aos calabouços.
O Mestre Séramon de Lune terminou de vestir sua armadura e juntou-se aos soldados no pátio de Lune. Eles partiram para a Onda, que lançava os picos para o céu e se confundia com as nuvens. Três dias depois, um soldado voltou, magro e ferido. Ele proferiu as mesmas palavras que Vivianne ouviu pela primeira vez aos dois anos de idade.
Farheim, Inlang.
Nunca mais.
Para as ilustrações, visite meu blog: www.tartarugaescritora.com
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A Boca da Guerra
FantasiUma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...