Capítulo 115: Nuille e Lucille

1 0 0
                                    



Desisti de muitas coisas para ir onde fui, ver o que vi. Desisti de você. Às vezes me pergunto se valeu a pena. Então me recordo que conheci minha mãe.

— Cartas.

Ernest se surpreendeu ao acordar numa Lune destruída. Em seu sonho a fortaleza estava inteira e reluzente como pedra sabão. Um sonho tão real que Ernest não acreditou naquelas ruínas queimadas. Alguns passos às costas de Ernest, Fulion se levantou. Aceitou a Lune atual como o que ela era: um guerreiro ferido. Ela se reergueria junto com a Franária.

Os cavaleiros de Fulion foram acordando, tateando, piscando, como se nunca tivessem visto este mundo antes. No topo da torre quebrada, Vivianne tirou do bolso um papelzinho amassado e chamou:

— Nuille.

O vento parou de soprar. Ernest se retesou, mãos abraçaram punhos de espadas, arcos. Uma sensação geral de que algo inimaginável se aproximava, um estreitar de gargantas, cabelos eriçados. Ao mesmo tempo, uma espécie de esperança, do tipo que acelera o coração e aproxima o horizonte. E assim eles ficaram, os cento e três fronteiriços e Ernest, paralisados numa mistura de expectativa e terror.

Vivianne tentou engolir o gosto rançoso de medo ressecando o céu de sua boca. Dizer Nuille transformou seus músculos em algodão, seu sangue num rodamoinho ao redor do umbigo. Ai, como queria fugir do Mistério que acabara de chamar.

Lune estava tão estática que um simples erguer de braço chamou a atenção de todos. O braço pertencia a Fulion. Ela apontava um chapéu. O rosto sob a aba preta ainda estava por se revelar, mas surgiam esgares de pele verde entre o preto do chapéu e o vermelho da capa comprida.

Nuille atravessou sem pressa a cidade morta de Lune, deteve-se na entrada quebrada da fortaleza queimada. Virou o rosto lentamente para um lado e para outro. Talvez estudasse aquela gente escondida atrás de restos de paredes. Talvez achasse graça.

Ele entrou.

Se as botas de Nuille não batessem contra os degraus da torre, ainda assim Vivianne sentiria sua aproximação. Passos que se notam no sangue. Ele pisou no topo da torre quebrada. O mundo de Vivianne, meras cinzas sob os pés dela, era uma infinidade de coisas sob as botas dele.

— Você me chamou. — A voz de Nuille cascateou degraus abaixo, eriçando grama, atiçando cinzas.

— Eu tenho um desejo.

— Eu tenho um preço.

Depois deste dia, Vivianne nunca conseguiu levar a sério a expressão de se estar à flor da pele. Nenhum autor, nenhum poeta, fofoqueiro, contador de histórias podia saber o que significava estar inteira na pele, como se o cérebro estivesse derretendo e escorregando pelos cabelos, caindo por pescoço e ombros, o sangue, correndo do lado errado da pele.

A pele rosada dos lábios tinha de alcançar Nuille. Vivianne se movia em espasmos. Virou a face na direção do Mistério, demorou um pouco mais para movimentar as pernas.

Nuille esperou parado. Não encorajou nem afugentou. A cabeça de sapo, a bocarra, um horrendo rasgo escamoso. Não foi a estranheza daqueles traços que amedrontou Vivianne, mas sim o poder que emanava dele. Aproximar-se de Nuille era esticar o dedo para o sol. Vivianne se sentiu despida de poder, corpo, razão. Ao mesmo tempo, Nuille a observava, e isso fazia com que ela se sentisse mais do que humana, mais do que o mundo, o universo, tudo. Isso também era insuportável.

Ela mal conseguiu suspirar contra os lábios dele. Mil anos se passaram naquele breve formigamento de bocas. Vivianne admirou-se de ainda possuir vida, identidade, qualquer coisa. Pensou ter entregue tudo a Nuille com seu breve beijo.

A Boca da GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora