Capítulo 86: Vivianne - O número oito

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Vivianne imaginou um casal: ele franês, ela gorgathiana. Em seu cenário imaginário, o casal debatia sobre seu futuro lar: Chambert. Ele queria lógica, ela, mistério.

— Uma estrutura sólida — diria ele.

— Segredos e nuances — diria ela.

O resultado foi esta miragem de certezas matemáticas com segredos escondidos em todos os cantos, atrás de todas as curvas. Em Arquiteturas do Segundo Império, escrito por J.I. Gono do Anjário, dizia um trecho que '(...) atravessar uma porta gorgathiana é, em si, uma aventura: nunca se sabe onde vai parar.'

Portas escondidas, corredores e escadas dentro de paredes, jardins visíveis das janelas mas impossívels de se alcançar (não para Vivianne, ela encontrou caminhos para todos os jardins), um andar inteiro escondido na segunda torre leste. Vivianne descobriu-os todos no correr de vários dias.

Ainda assim os pedaços de Chambert não encaixavam. Distâncias longas demais, faltava alguma coisa.

Ao redor de Vivianne Chambert formigava. Pierre e Neville fora das muralhas, estudando o terreno; Joanna, o Eslariano e Thaila organizando mantimentos junto com Coalim; Gregoire tentando ficar fora do caminho; Germon e Bojet levantando armamentos; Gaul e Luc organizando os civis; Líran assombrando Chambert e Tuen como fantasma pedindo para viver. O Cinzento pedindo para morrer.

Vivianne viu Joanna e Thaila e se escondeu nas dobras de uma parede. Um pingo de culpa coçou seu peito. Joanna e Thaila precisavam de ajuda. Organizar Tuen e Chambert exigia muito mais do que a Pluma ou uma padaria. Coalim ajudava, mas Coalim se perdia com eventos grandes. Sua especialidade eram os detalhes: a melhor disposição das almofadas coloridas de Clément de Deran, onde encontrar os melhores ingredientes para as aventuras culinárias de seu rei. Coalim fazia tudo o que Thaila e Joanna diziam, mas ele era um par de mãos. Elas precisavam de mais um cérebro.

O Eslariano, avoado, bêbado com o êxtase de tudo o que estava acontecendo à sua volta, esquecia-se da ordem das coisas, e Joanna perdeu algumas horas naquela manhã procurando um suprimento de grãos que o Eslariano havia guardado no porão de uma das torres reservadas para armas. Carroças cheias de suprimentos e armas começaram a chegar da Fronteira, embora os guerreiros da Fronteira continuassem no Sul.

No entanto, Chambert exigia atenção. Bem conservado demais para seus quase quinhentos anos de idade. Parecia novo, embora Vivianne tivesse certeza que ninguém tinha cuidado da manutenção do castelo. As plantas aqui eram ainda mais exuberantes que as de Lune. Frutas amadureciam e feridas se fechavam muito mais depressa que em qualquer lugar da Franária. Ela foi com Marie uma vez visitar o Acidentado e Marie disse que uma queda daquelas teria matado até um homem forte e inteiro, quanto mais uma criatura quebradiça que nem Leonard.

— E esse gato maldito nunca me dá paz — Marie rosnou para o gato sem rabo, que não saía do caminho para ela examinar o Acidentado.

Vivianne esboçou em sua mente um mapa de Chambert. Três muralhas, sete torres, oito jardins secretos. Sete era considerado número de sorte na Franária, mas em Gorgath oito era o número mágico. Talvez o gorgathiano que construiu Chambert tenha sido forçado a fazer apenas sete torres, mas vingou-se ao esconder oito jardins fechados pelo castelo.

— Eu estou nos detalhes — teria dito o gorgathiano.

O esboço mental do mapa de Chambert tinha um buraco no meio. Vivianne checou distâncias, alturas, espessuras. O processo durou três dias. O buraco continuava ali. O que Vivianne estava fazendo de errado? Nada. Os cálculos estavam corretos. Tinham de estar corretos. Nesse caso, havia mesmo um buraco no meio de Chambert.

Vivianne se espremeu pela lateral de uma carroça de suprimentos que atravessou os portões ao mesmo tempo que ela. Correu pela beirada da estrada até chegar quase ao meio do caminho entre Chambert e Tuen. Desde que tinha chegado a Chambert, a perna parou de doer. Vivianne virou e continuou andando de costas. Daquela distância a muralha externa dava a impressão de ser uma montanha. Três anéis de pedra protegiam Chambert. Pareciam circulares, mas eram ovais. O anel externo era interrompido a intervalos por quatro torres cardinais. A muralha do meio com três torres, uma delas bem em frente ao portão da muralha externa. E a muralha interna, que não era muralha, mas a principal habitação de Chambert, com saguões e apartamentos, um prédio em forma de anel.

Só que não havia nenhuma conexão entre o meio daquele anel e o resto do castelo.

Vivianne foi para a beira da estrada para dar espaço a um cavaleiro que chegava a Chambert. Se ela tivesse olhado, teria reconhecido o mensageiro Menior, mas só o que ela pensava era que queria Chambert de cima! De onde Vivianne estava, só o que conseguia enxergar eram o portão e cinco das sete torres: duas da muralha externa e as três da segunda muralha. Ela começou caminhar ao redor do castelo para estudar melhor as três torres internas. Parou, torceu o rosto fazendo cálculos.

As torres internas eram tão altas quando as externas, mas Chambert estava em terreno elevado. Isso significava que, de onde Vivianne estava, não deveria ser possível ver tanta torre. Vivianne refez os cálculos. Mesmo se o terreno fosse mais baixo, ainda assim ela só poderia enxergar duas das torres internas. Se ela estava vendo três, era porque o número oito de Gorgath reinava afinal de contas. Tinha uma torre escondida em plena vista no meio de Chambert.

Por quê? E como chegar nela? Vivianne gastou as horas seguintes circundando o castelo. Sempre se podia ver três torres internas. Nunca quatro. Sempre que a torre central se fazia visível, uma das três torres do segundo anel ficava invisível. Não à toa os gorgathianos eram considerados mestres da ilusão.

Vivianne estava ciente de aindanão ter descoberto todas as passagens secretas de Chambert, mas desvendousegredos o bastante para perceber um padrão. Havia jardins secretos por toda afortaleza. Uns menores que outros. Tudo em Chambert tinha razão de ser. Setetorres franesas para esconder uma no centro. Vários jardins para esconder aimportância de um. Vivianne sabia exatamente qual.    

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