Capítulo 65: Neville - Amanhã

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Neville acordou numa cabana de madeira, uma fogueira no centro. Ao seu lado, deitado e cinza, estava o homem sem nome que ele havia arrancado das trevas. Do outro lado da fogueira estava o vulto negro de Sáeril Quepentorne e um jovem que bebia alguma coisa fumegante de uma caneca. Neville imaginou que ele fosse Gregoire, que, de acordo com Sáeril, havia recolhido todos eles da estrada.

O vulto negro de Sáeril se moveu, Gregoire engasgou, deu um pulo de gato arrepiado, grudou as costas na parede. O caneco jogado para o alto caiu e rolou para o lado do fogo. Gregoire levou outro susto quando Neville levantou o braço para estudar a própria mão.

Dedos negros. Sim, Neville era negro, orgulhava-se disso, do sangue satironês. A textura das próprias impressões digitais, ossos destacados nas juntas calejadas, músculos do antebraço, elegantes e ágeis como corda de arco. O arco, onde estava? Sempre ao seu lado. Tinha poder de sonho aquele arco satironês, estava sempre onde devia estar: ao alcance da mão.

Neville se apoiou no chão, içou o corpo, escalou o próprio esqueleto até o pico de sua altura. Conforme se movia, o cinza se destacou como pele de cobra, esfarelou, sumiu.

Gregoire da Fronteira continuava espremido contra a parede. Devia ter vinte anos, pele aveludada pouco acostumada ao sol, cabelos finos e castanhos, dedos com grafite borrado. Ele destacou as costas da parede e disse timidamente:

— Olá. Ãhn, eu sou Gregoire. Olá.

— Neville de Fabec.

Neste momento, o homem que Neville havia arrancado das trevas ergueu a cabeça — o resto do corpo permaneceu morto — e estudou Neville sem piscar. Disse:

— Capitão Neville de Fabec?

— O próprio.

— Você matou meu irmão.

Neville aceitou aquilo como aceitava que o sol se punha todas as tardes. Havia matado irmãos, pais, mães, filhos.

— Matou meu irmão e não me deixou morrer. Que sentido tem isso?

— Não sei.

Do outro lado do fogo, Sáeril tentou se levantar, um pretume sólido escorregando para cima como sombra ao fim do dia. Cambaleou e pareceu que ia tombar. Apoiou-se na parede e encostou um joelho no chão. Gregoire automaticamente estendeu os braços para ajudá-lo, mas, tão instintivamente quanto tinha impelido as mãos para frente, recolheu-as, como se tivesse medo de se queimar. Disfarçou, recuperou o caneco caído, alcançou uma garrafa, ergueu-a a Neville e ao homem cinzento:

— Licor?

O Cinzento ainda mirava em Neville uns olhos cheios de trevas.

— Eu deveria matar você.

Neville puxou uma adaga da bota e ofereceu o cabo. O cinzento se afastou da adaga como se tivesse levado uma estocada. Arrastou-se pelo chão e então pela parede, até ficar sentado. Não piscou, os olhos fixos no punho — não na lâmina. De repente, começou a rir. Uma gargalhada quase histérica se misturou com soluços espremidos e lágrimas.

— É isso que as trevas fazem a um homem? — perguntou Gregoire.

— É isso que a Guerra faz a um homem — disse Sáeril Quepentorne. Tentou erguer-se mais uma vez.

Neville deu a volta na fogueira e amparou o manto negro.

— Você está fraco.

— Estou — sibilou o mago. Parecia querer dizer mais. Ao invés disso, desmaiou.

Neville deitou-o no chão, cobriu-o com a própria capa.

— Ele salvou nossa vida.

E o Cinzento, encostado à parede, perguntou:

— Para quê?

— É noite — disse Gregoire. — Sugiro descansarmos aqui. Amanhã, levaremos o mago para a casa de meu padrasto em Carlaje. Enquanto isso — ergueu novamente a garrafa, — licor?

Serviu três copos. Brindaram em silêncio. O licor era eslariano, tinha gosto de infância em Debur, do riso de Thaila, do pão que o Eslariano fazia. O Eslariano. Nevile invadiu Patire para salvar o Eslariano e a própria mãe, só para abandoná-los nas cinzas de Fabec junto com o Esqueleto de Anuré.

As memórias de Neville logo antes de ele se perder em cinzas estavam ainda rarefeitas, mas a mente dele se fixava em Tuen. Por quê? Os soldados fiéis a Neville e a Robert estariam em Debur, se é que ainda havia alguém. Olivier os teria encurralado todos.

Olivier. Ele raptou Thaila. Neville se perdeu em trevas a caminho de Tuen, para procurar Thaila. Ele saltou em pé.

— Preciso ir a Tuen.

— Amanhã — disse Gregoire.    

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