Neville acordou numa cabana de madeira, uma fogueira no centro. Ao seu lado, deitado e cinza, estava o homem sem nome que ele havia arrancado das trevas. Do outro lado da fogueira estava o vulto negro de Sáeril Quepentorne e um jovem que bebia alguma coisa fumegante de uma caneca. Neville imaginou que ele fosse Gregoire, que, de acordo com Sáeril, havia recolhido todos eles da estrada.
O vulto negro de Sáeril se moveu, Gregoire engasgou, deu um pulo de gato arrepiado, grudou as costas na parede. O caneco jogado para o alto caiu e rolou para o lado do fogo. Gregoire levou outro susto quando Neville levantou o braço para estudar a própria mão.
Dedos negros. Sim, Neville era negro, orgulhava-se disso, do sangue satironês. A textura das próprias impressões digitais, ossos destacados nas juntas calejadas, músculos do antebraço, elegantes e ágeis como corda de arco. O arco, onde estava? Sempre ao seu lado. Tinha poder de sonho aquele arco satironês, estava sempre onde devia estar: ao alcance da mão.
Neville se apoiou no chão, içou o corpo, escalou o próprio esqueleto até o pico de sua altura. Conforme se movia, o cinza se destacou como pele de cobra, esfarelou, sumiu.
Gregoire da Fronteira continuava espremido contra a parede. Devia ter vinte anos, pele aveludada pouco acostumada ao sol, cabelos finos e castanhos, dedos com grafite borrado. Ele destacou as costas da parede e disse timidamente:
— Olá. Ãhn, eu sou Gregoire. Olá.
— Neville de Fabec.
Neste momento, o homem que Neville havia arrancado das trevas ergueu a cabeça — o resto do corpo permaneceu morto — e estudou Neville sem piscar. Disse:
— Capitão Neville de Fabec?
— O próprio.
— Você matou meu irmão.
Neville aceitou aquilo como aceitava que o sol se punha todas as tardes. Havia matado irmãos, pais, mães, filhos.
— Matou meu irmão e não me deixou morrer. Que sentido tem isso?
— Não sei.
Do outro lado do fogo, Sáeril tentou se levantar, um pretume sólido escorregando para cima como sombra ao fim do dia. Cambaleou e pareceu que ia tombar. Apoiou-se na parede e encostou um joelho no chão. Gregoire automaticamente estendeu os braços para ajudá-lo, mas, tão instintivamente quanto tinha impelido as mãos para frente, recolheu-as, como se tivesse medo de se queimar. Disfarçou, recuperou o caneco caído, alcançou uma garrafa, ergueu-a a Neville e ao homem cinzento:
— Licor?
O Cinzento ainda mirava em Neville uns olhos cheios de trevas.
— Eu deveria matar você.
Neville puxou uma adaga da bota e ofereceu o cabo. O cinzento se afastou da adaga como se tivesse levado uma estocada. Arrastou-se pelo chão e então pela parede, até ficar sentado. Não piscou, os olhos fixos no punho — não na lâmina. De repente, começou a rir. Uma gargalhada quase histérica se misturou com soluços espremidos e lágrimas.
— É isso que as trevas fazem a um homem? — perguntou Gregoire.
— É isso que a Guerra faz a um homem — disse Sáeril Quepentorne. Tentou erguer-se mais uma vez.
Neville deu a volta na fogueira e amparou o manto negro.
— Você está fraco.
— Estou — sibilou o mago. Parecia querer dizer mais. Ao invés disso, desmaiou.
Neville deitou-o no chão, cobriu-o com a própria capa.
— Ele salvou nossa vida.
E o Cinzento, encostado à parede, perguntou:
— Para quê?
— É noite — disse Gregoire. — Sugiro descansarmos aqui. Amanhã, levaremos o mago para a casa de meu padrasto em Carlaje. Enquanto isso — ergueu novamente a garrafa, — licor?
Serviu três copos. Brindaram em silêncio. O licor era eslariano, tinha gosto de infância em Debur, do riso de Thaila, do pão que o Eslariano fazia. O Eslariano. Nevile invadiu Patire para salvar o Eslariano e a própria mãe, só para abandoná-los nas cinzas de Fabec junto com o Esqueleto de Anuré.
As memórias de Neville logo antes de ele se perder em cinzas estavam ainda rarefeitas, mas a mente dele se fixava em Tuen. Por quê? Os soldados fiéis a Neville e a Robert estariam em Debur, se é que ainda havia alguém. Olivier os teria encurralado todos.
Olivier. Ele raptou Thaila. Neville se perdeu em trevas a caminho de Tuen, para procurar Thaila. Ele saltou em pé.
— Preciso ir a Tuen.
— Amanhã — disse Gregoire.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Boca da Guerra
FantasíaUma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...