Tinha cotovelo demais na Pluma aquela noite. Uma única pessoa se sentava a salvo numa bolha de espaço: Líran com o chapéu roxo feito à mão em Sejo Tíen. Naquela manhã Vivianne tinha perguntado por que o palhaço Lecoeurge tinha deixado o chapéu para trás.
— Pensei que fosse comum humanos darem presentes a humanos — disse Líran.
— É comum, mas existem tipos diferentes de presente — disse Vivianne. — Lecoeurge ama esse chapéu, não deixava ninguém chegar perto.
— Então por que ele me deu?
Vivianne coçou a cabeça.
— Um presente pode ser uma declaração — ela disse — de respeito, de amizade, até de amor.
Líran colocou o chapéu sobre a mesa. Uma declaração. Até de amor. Líran havia se tornado mortal para experimentar essas coisas. Amor, aventura, a pressão de existir sabendo que sua morte te encontraria a qualquer momento. Líran vasculhou na memória todos os momentos que passou junto ao palhaço sem braços.
Lecoeurge ensinou Líran a fazer uma fogueira, a remendar roupas rasgadas, a fazer chá. O povo da caravana gostava dela, conversava com ela, mas não chegava perto. Lecoeurge, se tivesse mãos, teria tocado Líran.
Aqui na Pluma também: as pessoas vinham vê-la, mas ninguém chegava perto. Todos se apertavam nessa maré de cotovelos mas ninguém tocava nela. As costas de Líran começaram a doer de tanto ficar sentada naquele banco sem encosto, mas ela não quis se levantar, com medo do silêncio que sempre seguia todos os seus movimentos.
Se Lecoeurge estivesse aqui, Líran não estaria sozinha. Será que amor era isso: a possibilidade de um toque? Alguém uma vez escreveu que o toque de outra pessoa era o verdadeiro lado de cá da pele. De qual lado da pele ficava o amor?
Alguém se sentou ao seu lado. Vivianne passou uma perna por cima do banco e disse:
— Vire de costas para mim.
Líran obedeceu e Vivianne apoiou as costas nas dela.
— Não gosto de bancos — disse Vivianne — eles não têm apoio para as costas.
Será que aquilo era amor? Aquelas peles e panos e ossos se encostando, se apoiando? Líran não sabia. Ela estava no centro de uma história mas não vivia uma aventura. Ela conhecia o verdadeiro lado de cá da pele, mas não sabia dizer se era amor. Líran estava perdida. Ao menos isso ela pensou estar fazendo certo, porque ela se lembrava de olhar divertida aqueles mortais todos, tão perdidos na vida. Parecia tão fácil antes, quando ela olhava de fora. Tão óbvio.
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A Boca da Guerra
FantasíaUma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...