Capítulo 126: Ei-lo

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Os exércitos se prepararam para partir. Neville e sua árvore se juntaram às tropas deranianas, que se dividiram em duas: uma sob o comando de Adelaide, a outra sob o comando de Marcus de Lune. Um soldado se destacou das tropas de Marcus e dirigiu-se para o exército de Adelaide.

— Ei — chamou um soldado. — Você não vem conosco?

O rosto que voltou-se para dizer — Não. — era tão assustador, que o outro soldado não insistiu. Desejou nunca mais ver aquele esqueleto vestido em pele humana.

A relva terminou abruptamente em preto. A mudança não foi sutil, com nuança de verde-cinza. O passo anterior foi verde, o seguinte foi preto-carvão. Pierre deixou o cavalo tenso para trás, cruzou sozinho o pretume que uma vez foi Fabec.

Do outro lado, o preto terminava tão de repente quanto havia começado, só que na Boca não havia verde, havia morte. Pierre caminhou sobre dunas de cinzas, poeira de corpos, conchas de metal. Estranhou que tanta morte não cheirasse mal. Ao contrário, o vale tinha um cheiro doce de erva queimada e mel.

No ar, cinzas flutuavam em pequenos flocos que se desintegravam ao tocarem a pele de Pierre. Vidas. Todas aquelas cinzas foram um dia vidas franesas, consumidas por trevas, ingeridas por Guerra. Pierre pegou um punhado daquela areia-morte, deixou-a escorrer por seus dedos. A areia caiu atiçada por um tremor leve, contínuo, que quase convencia o sangue de Pierre a correr na direção oposta.

Na Boca da Guerra a batalha seguia.

Que inimigo terrível era um dragão. Implacável, inesgotável. Não podia atacar Guerra diretamente; ela era inatingível para ele, no entanto ali estava um rasgo, causado por Sáeril com o poder de Nuille. Chelag'Ren entrou naquele rasgo e expandiu-se. Guerra jamais conseguiria tratar sua ferida com aquele dragão garantindo que ela sangrasse trevas para sempre. Era preciso matá-lo, mas como? Ali, no rasgo, envolvido por aquele poder venenoso, que às vezes se prendia às garras de Chelag'Ren e rasgava Guerra um tantinho mais, o dragão era tão inatingível para Guerra quanto ela para ele. Assim, eles rolavam ao redor um do outro, numa batalha impossível para ambos, porém que nenhum dos dois podia abandonar.

Ao redor de Pierre, o vale se remexeu com o confronto de poderes. Já devia estar perto o bastante para fazer o que tinha em mente. Precisou se afastar dos outros para que ninguém mais corresse perigo. Provavelmente haveria retaliação, possivelmente morte. Pierre não sabia como o seu próprio poder, aquela tal de história, reagiria ao entrar em choque com trevas. Seu plano não era exatamente uma ideia ou um pensamento. Sabia do que era capaz, assim como sabia que podia andar. Uma vez que pegou na mão o potinho de tinta preta com a voz de Nuille, soube o que fazer, mas não soube dizer aos outros. Como explicar a alguém que seu sangue sabe em que direção correr?

No meio do vale, Pierre abriu a garrafinha de tinta.

Guerra sentiu o que só poderia ser descrito como um calafrio. Não! Aquele poder era a morte e Guerra mal havia começado a viver.

Pierre mergulhou o dedo na tinta; mergulhou a História na tinta. A História se refestelou, inchou, vibrou.

Desespero fortaleceu Guerra. Ela jogou trevas, vento e morte contra Chelag'Ren, empurrou-o longe, então jogou-se inteira contra Pierre, que havia pescado de seu bolso a escama de Chelag'Ren e escrevia nela com a tinta de seu dedo.

Guerra agarrou Pierre, arremessou-o contra o vale de morte, cobriu-o com escuridão e cinzas, sufocou-o. Pierre viu o rosto de sua morte. Seu corpo deixou de obedecê-lo com o primeiro ataque de Guerra. Fechou os olhos. Queria viver. Queria — que engraçado pensar nela e só nela agora — ver Vivianne. Que injusto não pensar em Gregoire, nem em Chelag'Ren. Pierre forçou-se a elevá-los à mesma altura de Vivianne em seus pensamentos.

Percebeu que estava pensando demais.

Que continuava vivo.

Abriu os olhos. Chelag'Ren, assustadoramente vermelho e branco no vale cinza, segurava Guerra, não mais intocável, com suas garras. Puxou-a como a um cobertor para longe de Pierre. As gigantescas asas de plumas brancas se desdobraram e por um momento Pierre pensou que o céu havia se tornado branco. Chelag'Ren levantou voo, levando Guerra consigo.

Pierre estava deitado de lado no chão. Tentou mudar de posição, mas seu corpo era um amontoado de ossos quebrados e dor. O braço esquerdo estava mole, desconectado de qualquer vontade de Pierre. Da mão, escorregou a escama vermelha. Sobre ela, com o poder de Nuille, estava escrito Chelag'Ren.

A cabeça de Pierre formigava com inconsciência. A mão direita já quase não o obedecia, mas ele conseguiu ainda pegar a avelã que Sáeril havia lhe dado e plantá-la ali, na Boca da Guerra. Escuridão veio se fechando, desde a sua nuca até seus olhos. A mão direita finalmente ficou inerte, descansando sobre a semente enterrada. A última coisa que Pierre ouviu foi o grito de uma águia.

Chelag'Ren perfurou o céu, um cometa cujo rabo era Guerra. Ela prendeu-se à Franária, mas Chelag'Ren era forte demais. Mais e mais alto, vermelho e negro rasgando azul, até que o céu ficou para trás e o silêncio tornou-se absoluto. Só o que havia eram Guerra, Chelag'Ren e luz do sol nas escamas vermelhas. O dragão enrolou Guerra como uma bola de argila entre suas garras.

Guerra não tinha olhos. Sentiu sem ver a vastidão do mundo que orbitava nas garras de Chelag'Ren. Tão grande, tão suculento. Tudo o que ela queria era um pedacinho para si. A Franária, nada mais. Se ela soubesse — ah, se ela soubesse — que dragões eram tão poderosos, que até mesmo um pequeno humano podia lhes dar o poder para resistir. Parecia tão simples pegar um para si, invadir sua magia, moldar o próprio futuro. Foi um erro. O único erro.

— Você queria o meu poder — disse o dragão.

Eu só queria viver.

Chelag'Ren abriu a boca. — Ei-lo.

A Boca da GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora