Sáeril estranhou os pálidos dedos longos presos às suas mãos. Tracejou com o dedo de uma mão as linhas da palma da outra. Nunca antes havia reparado nas próprias unhas. Achou-as curiosas, ao mesmo tempo familiares e alienígenas. Cortadas rentes aos dedos, levemente rosadas, limpas. Há quanto tempo não as via? Quatrocentos anos, mais ou menos. Costumavam ser tão naturais, agora ele não sabia para que serviam.
O Sáeril que tinha aquelas mãos, o elfo, não existia mais. Só nas memórias dos muito poucos que o conheceram antes de ele virar um mistério, na época em que ele era só mago. Hoje em dia, parecia tão fácil a Sáeril ser apenas um mago. Todas as incertezas de sua existência anterior nada significavam se comparadas a isto: não se saber o que é. Mistérios. Criaturas únicas, inexplicáveis, Líran, Yukari, Nuille. Eu.
Engraçado ele pensar em Yukari e no instante seguinte ela vir em sua direção, empurrando para o lado nevoeiros como cortinas diáfanas. Ela havia conhecido Sáeril antes da extinção dos elfos. Mas isto, Sáeril sabia, não era uma lembrança: era um sonho.
Yukari parou na frente dele. Vestia o uniforme preto da Guarda Imperial, o broche prateado em forma de lobo prendendo no lugar a longa capa vermelha. Os cabelos de Yukari eram pretume líquido, a pele, branco veludo. Corpo esbelto, movimentos bonitos. Adorável, doce, não fossem os olhos, dois cortes de infinidade no branco da pele, buracos negros que engoliam estrelas, galáxias, o universo. Difícil imaginar que alguém com aqueles olhos pudesse dizer algo tão mundano como:
— Oi, tudo bem?
— Estou fraco. Este sonho é meu ou seu?
— De Fregósbor.
— Ele tem sonhado muito sobre você?
— Tem sonhado com muitas coisas — ela disse, então chamou — Fregs, um pouco de chá, por favor.
As cortinas de névoa deram lugar a um gramado aveludado sob uma cerejeira florida. Sobre uma toalha branca de bordas vermelhas descansavam os aparatos necessários para fazer chá.
— Eu me lembro desta árvore — disse Sáeril. — Esta é a sua antiga casa, em Sátiron.
E lá estava a casinha, meticulosamente bela, complicadamente simples, sem um ornamento a mais do que o necessário, cada pedrinha perfeitamente posicionada em harmonia com o resto do sonho. Yukari não vivia naquela casa desde o surgimento da Terra dos Banidos.
— Ele espera por uma história que mude o futuro — disse Yukari — no entanto sonha com passados longínquos.
Ela sentou-se sobre os calcanhares, começou a preparar chá com gestos tão lisos quanto as pétalas da cerejeira. Yukari em movimento era um eterno balé.
Sáeril sentou-se de frente para ela.
— Ele talvez queira fazer parte da história.
— Então por que sonhar com o passado? — perguntou Yukari.
— Porque no passado ele sabia quem era.
— Fregs — chamou Yukari. — Por favor me sonhe como sou agora.
Num instante a fundadora e comandante da Guarda Imperial Satironesa desapareceu. Em seu lugar se sentava uma criança. Continuava usando o uniforme, agora grande demais para ela. Ergueu os braços para Sáeril dobrar as mangas.
— Sáeril também se sentirá mais confortável como ele mesmo — disse Yukari.
Sáeril não teve tempo de protestar, pedir para esperar. Estava novamente sob o manto negro. Mãos, dedos, unhas: uma luva de couro. Que tristeza não poder ser ele mesmo, mas que alívio voltar a ser quem era.
Sou um paradoxo, pensou.
Os olhos pretos de Yukari não perderam a intensidade num rosto infantil. Ela terminou de preparar o chá em silêncio. Serviu-o, ofereceu a xícara a Sáeril com as duas mãos. Ele havia sentido falta daquele chá, de ver Yukari a prepará-lo.
— Você vem para Chambert? — perguntou Yukari.
— Não está nos meus planos, por quê?
— Prefiro não fazer parte desta história, mas não quero deixar Fregósbor sozinho. Ele está frágil, perdido. Imagino que morreria, se soubesse como. Ou viveria se lembrasse como. Ao invés disso está preso como um navio no fundo do oceano.
Saborearam o chá. Pétalas de cerejeira se desprendiam da árvore, rodopiavam no ar, mas nunca tocavam o chão.
— Talvez esta história consiga trazer navios afundados de volta à superfície — disse Sáeril.
De muito longe o grito de uma águia penetrou o sonho. Sáeril e Yukari olharam para o alto. Pétalas cor-de-rosa, céu azul iluminado.
— Ele sonha com Sátiron, mas a Franária está aqui, apesar de apenas um eco — disse Sáeril.
— Fregósbor nunca sonhou com aFranária antes. Talvez a História tenha chegado a Chambert.
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A Boca da Guerra
FantastikUma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...