Existem tantos tons de silêncio quanto existem tons de voz. O silêncio favorito de Neville era o que se esgueirava por entre os acordes de seu violão quando ele tocava devagar, atrasando a melodia para saborear o silêncio entre a nota solta, pairando no ar, e a nota ainda presa na ponta dos dedos, cheirando a pão compartilhado a três no topo da colina atrás da casa em Debur. Thaila no meio, Robert de um lado, Neville do outro.
O silêncio salgado do pai traído e o silêncio halitoso da Boca da Guerra; de Lencon após o massacre, de Anuré. Os escravos de olhos quietos, mesmo depois de soltos, a morte em silêncio dos que não aguentaram chegar até Lencon, o adeus sem voz de Maëlle aos escravos libertos que ficaram na cidade destruída. O silêncio doente do Eslariano, que tropeçava pela estrada, amparado por Maëlle. Esqueleto com olhos de osso.
Nada daquilo se igualava ao silêncio que Neville encontrou em lugar de Fabec. Pó áspero grudava na pele e entupia os poros, queimava as narinas e avermelhava os olhos com a morte ardida de Robert. Neville caminhou sozinho até onde costumava ser seu quarto. Não havia nada para guiá-lo, apenas a memória de quantos passos dava para cruzar o chão de mosaico da Casa Quadrada de Fabec. Mosaico, colunas, ruas: tudo cinzas.
— Capitão. — Um soldado veio atrá de Neville, cobrindo a boca e o nariz com um pedaço de pano.
Neville havia enviado alguns homens em busca de respostas.
— Encontramos um fazendeiro, capitão, meio morto e meio maluco.
— Onde ele está? — perguntou Neville.
— Completamente morto, capitão, embora não tão maluco. As cinzas matarm muitos além do fogo.
— Ele disse o que causou este massacre?
O pescoço do soldado desapareceu no meio dos ombros. Neville perguntou-se de que o soldado tinha mais vergonha: da resposta que ele deu ou de acreditar nela.
— Um dragão.
Neville fez que sim com a cabeça. — Leve os homens de volta a Debur. Diga a Henrique que perdemos Fabec.
Fazia sentido, um dragão. Fogo normal não vaporiza pedra. O soldado foi cumprir suas ordens e Neville achou que estava sozinho nas cinzas, mas alguém perguntou:
— É satironês esse seu arco?
Neville segurou com mais força o arco longo pintado de preto, e voltou-se para a face enrugada emoldurada num caos de cabelos brancos. O velho era baixo, mal chegava aos ombros do arqueiro.
— Você!
O velho examinou melhor o arco. — É mesmo um arco satironês! Não vejo um desses desde... desde... Não me recordo.
Neville deu um passo em direção ao velho, que teve de arquear as costas para poder encará-lo.
— Que grandes narinas o senhor tem.
— Está sonhando outra vez? — perguntou Neville.
O velho piscou, expôs um dedo lambido ao vento.
— Vejam só, parece que estou.
— Você pode fazer algo? — perguntou Neville.
— Asseguro-lhe que posso fazer muitas coisas.
— Pode fazer algo a respeito disto?
A cabeça do velho seguiu o semicírculo que a mão de Neville desenhou no ar, como um cão seguindo um osso.
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A Boca da Guerra
FantasiaUma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...