Chegou a Fabec um homem sem braços usando um chapéu roxo com uma margarida presa à aba. Neville se preocupou com o palhaço sozinho nas estradas de Baynard. A guerra podia estar contida na Boca, mas a morte e a violência percorriam todas as estradas.
— A caravana está em Lune — disse Lecoeurge sentado à mesa de Neville. — Não existem bandoleiros perto da Boca da Guerra. E faz muito tempo que não ouço você tocar.
— Mandei o violão de volta a Debur — disse Neville.
Lecoeurge balançou a cabeça, desapontado.
— Aqui não é lugar para a música — disse Neville. As notas na Boca da Guerra não soavam, morriam. O violão oco engolia ao invés de libertar melodias. — O violão está seguro em Debur.
— Nada está seguro em Debur — disse Lecoeurge. — Você não sabe da revolução? A caravana deixou de visitar a capital há dois anos. A morte virou rotina. Mata-se com hora certa, para não atrapalhar o comércio, mas Rimbaud não quer ter nada que ver com isso. Isto aqui é uma versão em miniatura da própria Guerra Civil, foi o que ele disse. A diferença é que, ao invés de se baterem na Boca da Guerra, estão se matando na Praça do Comércio.
Neville se levantou e foi até a janela. Há três anos Henrique não enviava reforços a Fabec, desde antes de Vincent aparecer. Pelo menos uma coisa que a população reinvidicou aconteceu: os sorteios terminaram. Mesmo assim, Fabec resistia. Neville já não duvidava das trevas. Havia um poder na Boca e esse poder envolvia Neville e seus homens, agora treinados e ativos. Eles morriam. Na Boca da Guerra existia apenas cinza e morte. Mas eles matavam mais do que morriam. A flecha de Neville mais de uma vez feriu Faust de Patire mas nunca mortalmente. A guerra ganhou vida com a vinda de Neville. Batalhas incendiárias, vermelhas e urrantes, como não aconteciam há centenas de anos, desde antes de a Guerra se tornar rotina.
— Eles querem a sua volta — disse Lecoeurge. — Você é a solução.
— Eu não tenho volta — disse Neville. — Se eles querem um capitão, devem procurar meu pai.
— Você não sabe? — perguntou o palhaço. — O capitão sem pernas foi embora no mesmo dia que você.
— Meu pai não está em Debur? Onde ele está?
— Há rumores de que ele foi para o Anjário. Você é o único capitão de Baynard e o povo precisa de você. A revolução precisa de um líder e o povo te respeita.
As trevas também gostavam de Neville, lhe davam força. Poucos eram os soldados de Fabec, mas a própria população da cidade começou a treinar, começou a matar.
— A gente aqui às vezes quer ajudar — disse Cabeça de Couro, apresentando a esposa.
— Eles terão de jurar defender Fabec — disse Neville. — Terão de agir com honra.
Trevas eram uma amizade terrível de se alimentar. Elas acariciavam Neville, mantinham-no vivo, mas roubavam-lhe vontade, desejos, propósito. Às vezes, ele acordava à noite pronto para matar, fosse quem fosse: o soldado do outro lado da porta, a criança que todo dia ia brincar nos mosaicos e ficava acariciando os lobos, o sapo e a raposa de mármore.
Não!
Neville havia jurado proteger aquela gente. Ele se agarrou ao juramento, a essa palavra, a essa honra. Ele tinha de resistir. As trevas o impeliam a destruir, mas seu senso de bushido ajudou a focar a destruição no inimigo, em Beloú. Se fosse para matar, que matasse Faust de Patire.
Toda vez que Neville acordava enxergando vermelho, ele repetia, como um mantra, as palavras do pai:
Honra é a única coisa sólida neste mundo.
Honra é a única coisa sólida.
Única coisa.
— Não posso — Neville disse a Lecoeurge. — Não posso quebrar meu juramento ao rei.
— Como você ainda pode acreditar que Henrique é um bom rei? — perguntou o palhaço. — Seu pai está sabe-se lá onde sem pernas e você, aqui, sem música.
— Não é essa a questão. — Neville tinha a certeza de que, se ele quebrasse sua palavra, ele inteiro se quebraria, feito cristal batendo em rocha.
Lecoeurge fez que ia discutir, mas deve ter visto alguma coisa nos olhos de Neville, porque mudou de ideia. Disse apenas:
— Não sei quando o vereinovamente, mas tentarei passar por Debur e pegar seu violão. Você precisa demais do que morte para se manter vivo.
Eu ia desenhar o Lecoeurge, que ainda não tem uma imagem decente, mas quando percebi já estava desenhando o Nuille e a Lucille. De novo.
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A Boca da Guerra
FantasíaUma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...