Capítulo 26: Vincent - O não julgado

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Mais um soldado chegou sozinho em Fabec. Chamava-se Vincent e tinha orelhas finas, coladas ao crânio. Ele não havia sido sorteado nem julgado. Veio por escolha própria, a exemlpo do capitão Neville.

— Me recuso — disse o soldado.

— A servir seu rei? — perguntou Neville.

Vincent apertou os lábios, mas a resposta estava nos olhos. Vincent também estava junto no dia em que Neville e Robert se ajoelharam aos pés de Henrique. Foi ele quem riu de Leonard Acidentado mas foi também um dos soldados que melhor evoluiu durante os treinos. Vincent sabia que Neville o considerava insolente, mas sabia também que o capitão apreciava seu esforço, sua seriedade nas armas, sua evolução como guerreiro.

— Você segue o bushido do corpo — disse uma vez o capitão — falta aplicar bushido na alma.

No escritório cinzento de Fabec, com uma lâmpada cinzenta atarrachada no lustre de ferro pendurado no teto (que coisa estranha, aquela redoma empoeirada. Vincent nunca tinha visto uma lâmpada antes. Não parecia capaz de muita coisa) Neville disse:

— Você fez um juramento a Henrique de Baynard.

— Estou aqui, não estou? Poderia ter ido a Deran, até mesmo a Patire, mas estou aqui, na Boca da Guerra. — Vincent poderia ter escolhido melhor o tom de voz, até as palavras, mas foi isso mesmo o que ele disse, e ainda levantou o queixo. Neville estava sempre pronto a questionar seus soldados, quando questionaria o rei?

— Conte-me o que está acontecendo — disse Neville.

Fazia quatro anos que Manó havia ido a Fabec. Depois dele, só os sorteados haviam chegado à Boca. Vincent ficou em Debur esse tempo todo, à sombra de uma revolução prestes a estourar, de mortes espreitando em becos, de espadas nuas nas ruas e ruelas, mas ninguém mais havia morrido depois dos treze mortos do dia da cadeira.

— Aquele homem não aparece — Vincent disse a Neville. — Aquele rei. Ele se esconde. O Esmeralda é um casco e Henrique, a tartaruga. Ele tem tanto medo, que está aceitando qualquer um para soldado.

Ele viu Henrique de Baynard recrutar crianças. Órfãos de dez anos arrastavam lanças nas muralhas do Esmeralda.

— Ele convocou até mesmo Leonard Acidentado — disse Vincent. — Deixe-me servir aqui com você, capitão, porque não aguento assistir o que está acontecendo em Debur.

Vincent contou ainda que Leonard era tão fraco que o povo se sentiu provocado. As crianças, eles acharam estranho, mas não tão incomuns. Já Leonard, ah, Leonard não era nem gente, ele era um acidente. Cercaram ele na rua e, de troça, arrancaram as roupas dele.

— Eu estava longe — disse Vincent — não tive tempo de chegar até ele, mas as pessoas se afastaram, assustadas. Você já viu Leonard, capitão?

Leonard tinha corpo transparente, parecia um vitral de carne. Dava para ver o osso através da pele. Nesse momento de espanto, contou Vincent, apareceu um homem ao lado do Acidentado.

— Usava trapos, mas neles ainda se via o escudo da águia comendo carne — disse Vincent.

O escudo de Patire trazia a imagem de uma águia pousada sobre uma ovelha, com um pedaço de carne na garra direita. A ovelha do escudo de Patire ainda estava viva e a águia a comia com calma. Aquele homem vestido em trapos devia ser mais um desertor de Patire.

— Não tinha um olho — disse Vincent. — Cobria o buraco com um pedaço de couro costurado na própria pele. Ele não disse nada, mas matou duas pessoas e os vivos se dispersaram feito ratos.

— Por que você fez isso? — perguntou Leonard ainda pelado.

— Ou você mata, ou você morre — disse o caolho.

— Mas é monstruoso.

— Na Boca da Guerra não existem homens. Só monstros.

O gato Jean se enroscou nas pernas do caolho.

— Ele só pode ter vindo de Patire — disse Vincent a Neville — pois aqui em Fabec há homens. Aqui em Fabec temos você. Deixe-me estar, capitão. Aqui, pelo menos, sei quem é amigo e quem é inimigo.

Mesmo os soldados sorteados hoje em dia não se importavam tanto de ir a Fabec. Fazia cinco anos que Neville comandava a guarnição e continuava vivo. Neville deixou Vincent ficar. Antes de dispensá-lo, perguntou por seus amigos e família. O Eslariano, contou Vincent, continuava na padaria e Thaila com ele. Robert servia no Esmeralda e Maëlle continuava com sua biblioteca.

— E aquela mulher estranha ainda trabalha lá — disse o soldado.

— Fulion?

— Outro dia eu a vi cuidando do cavalo. Ela não põe ferradura nele, sabia? Fez ela mesma uma espécie de sapato que absorve o impacto e não danifica o casco. Cheguei perto para ver e levei uma dentada daquele pangaré maldito.

— O nome dele é Mancha — disse Neville.

— Ele não confia ninguém, só na livreira.

E ela só confiava em Mancha, lembrou Neville. Um dia ele perguntou por que ela gostava tanto do cavalo.

— Nascemos juntos — ela disse, e nada mais.

Fulion tinha um cavalo porirmão.    

    

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