Capítulo 16: Neville - Loucura, veneno, flores

1 0 0
                                    


A seta atravessou a maçã e acertou a castanheira com um barulho seco.

— Desperdício de uma boa maçã — resmungou Robert, olhos vermelhos de sono.

Ele não estava preocupado de verdade com a maçã, Neville sabia disso. Só tentava preencher o silêncio de Neville, que andava mais quieto do que o comum. Quando ele, Robert e Thaila se encontravam, poças de silêncio se formavam toda vez que a conversa chegava em Neville. Para não preocupá-los, Neville carregava sempre seu violão, as madripérolas refletindo madrugada ou luar, notas graves substituindo sua voz, que se escondia em pensamentos e dúvidas.

O pai de Neville havia acordado, falava, agia. Mas não era o mesmo pai que Neville conhecia. Os olhos, tanto tempo focados em Por quê?, passaram meses sem foco algum e agora brilhavam e se avermelhavam de pouco piscar. O capitão sem pernas passava os dias trabalhando em madeira, fazendo móveis fortes e sem adornos, coisas práticas que o povo de Debur pudesse usar e, mais importante, pagar. As noites, ele passava na biblioteca. Quando Fulion estava em Debur, ela trancava a porta, se retirava para seus aposentos no andar de cima e deixava o capitão sozinho com livros de Nakamura e bushido. A janela da biblioteca ficava aberta e insone, derramando luz de velas sobre o luar fantasmagórico.

Lá dentro, o capitão debatia. Gritava com os livros, discutia, brandia os punhos. Certa manhã, Fulion encontrou-o no chão. Havia se exaltado tanto, que caiu da cadeira de rodas.

— Nos livros existem lâmpadas — ele disse para o teto, deitado de costas no chão. — Bushido existia em tempos de lâmpadas, mas elas não existem mais. Nada ilumina.

Fulion não se incomodava com o barulho.

— Meu corpo dorme na hora que deve dormir — ela disse.

O capitão sem pernas dormia durante o dia, sobre serragens, o rosto apoiado em lixas. Neville temia que ele dormisse um dia sobre uma serra, que furasse o olho em um prego. Quando revelou seu temor, o pai reagiu como se Neville tivesse criasse garras, asas e chifres e cuspisse fogo como um dragão feiticeiro.

Talvez o pai achasse impossível se machucar. Talvez fosse simplesmente o espanto de alguém que não se importa, até deseja um ferimento a mais. Um que se cure, só para provar que algo se cura, ou um que termine tudo. Finalmente o fim. Ferir-se talvez nunca tenha passado pela cabeça do pai, mas depois que Neville mencionou a possibilidade, o serrote e o machado passaram a ficar mais tempo no meio do caminho, onde uma cadeira de rodas pudesse engastalhar de forma que o ocupante caísse de testa na lâmina, ou as mãos se cortassem de tal forma que ficassem inúteis e não pudessem conter o próprio sangramento, que aconteceria quando ninguém estivesse por perto e terminaria, finalmente, em morte.

Quando o pai de Neville enxergava a possibilidade de morte, suas pálpebras tremiam, mas não desciam. Os cantos dos olhos se recolhiam mais para longe e as pupilas engoliam as íris. Mas Maëlle disse que homens honrados não se matavam e:

— Honra é tudo o que resta — disse o capitão sem pernas ao filho, num momento de aparente lucidez (porque a maior parte do tempo, ele estava em debate – se não com os livros, com qualquer coisa dentro da própria cabeça. A boca se movia, o pescoço tinha espasmos e a testa se contorcia). — Honra é a única coisa sólida neste mundo, a única lâmpada. Nunca quebre sua palavra, filho. Nunca. Se você quebrá-la perde a luz. No fim, tudo o que resta é saber-se íntegro.

Robert arremessou mais três maçãs, de uma vez. Neville acertou todas e o amigo colocou a mão branca no ombro mulato.

— Você é um fenômeno, sabia? O Eslariano disse que um arco longo satironês demora dez anos para ser domado. Você só treina há dois anos e não erra uma maçã.

A Boca da GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora