Capítulo 99: Pierre

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Pierre nunca quis ser diferente de nós, mas como é que a gente ia ser igual a ele?

— Diários de Gregoire

Pierre senta-se na Fronteira, à margem do Sangue. Céu e rio alaranjados em crepúsculo de outono; folhas douram o solo e as árvores se enfeitam de vermelho e ocre. Na outra margem, a Terra dos Banidos bafeja negrume.

Passos amassam as folhas secas atrás de Pierre.

— Parece que morri — diz Pierre.

— Não exatamente — diz uma voz branca e enrugada.

— Isto é um sonho?

— Não exatamente.

Pierre vira o rosto para o mago de cabelos entrópicos.

— Preciso encontrar alguém. Eu me lembro de estar em busca. Lá — ele aponta para o pretume do outro lado do Sangue. — Eu fui para a Terra dos Banidos.

Pierre se levanta e caminha até quase colocar os pés no rio. A água do Sangue lambe a ponta das botas dele com pequenas ondas de água doce que se tornam mais e mais preguiçosas até congelarem completamente. O outono laranja dá lugar a um inverno azul.

— No último inverno atravessei o Sangue congelado até a Terra dos Banidos. Era muito mais longe do que eu esperava.

— Uma miragem causada pela intensidade das trevas — diz Fregósbor.

— Levei três dias para cruzar o rio — diz Pierre. — O que eu tinha de comida acabou antes mesmo de eu pisar na outra margem, mas eu não podia voltar, alguma urgência me empurrava.

Fregósbor imagina que um dos pais de Pierre deve ter surgido da Terra dos Banidos, porque Fregósbor se lembra de muito pouco, mas aquele tom vermelho de pele nunca tinha migrado para o norte de Sátiron. Ele concentra sua mente entrópica na textura daquele sonho-memória-morte e procura ali o pai de Pierre.

Um homem se senta a uma escrivaninha traduzindo livros. Sem levantar o lápis, ele diz:

— Não fui eu que Pierre buscou nas trevas. Eu estou aqui. Ao mesmo tempo, não estou aqui: estou nos livros que traduzo. De certa forma, meu filho teve de procurar um pai em outro lugar.

Fregósbor então dobra o coma de Pierre e faz um cone no irmão, Gregoire. Era o irmão Gregoire que Pierre buscava?

Meio-irmão — diz Pierre. — E ele me odeia.

Pierre teve de procurar um irmão em outro lugar.

A mãe, pensa Fregósbor e a resposta é um sopro de neve. Pierre teve de encontrar uma mãe em outro lugar.

— Como você faz isso? — pergunta Pierre. — Move meu sonho como se estivesse fazendo dobraduras.

— Você consegue ver o que eu estou fazendo?

— Não vejo, mas percebo muita coisa.

— Impressionante — diz Fregósbor. — Você daria um bom feiticeiro.

— Magia. Eu já sei o que fui procurar: magia vermelha.

— O dragão — diz Fregósbor. — Ele é vermelho.

— Se chama Chelag'Ren e nadava no Sangue todos os dias ao por do sol — diz Pierre.

O sonho se transforma. O sol toca o horizonte, tingindo o Sangue de vermelho. Céu e terra transformam-se num arco-íris escarlate, exceto a floresta do outro lado do rio. A Terra dos Banidos é sempre treva.

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