Os dois melhores amigos de Thaila eram Robert e Neville. Robert esperava Neville do lado de fora da padaria. Roía uma maçã, como sempre. Mordia, mastigava sem pressa, engolia e passava a língua pela boca toda, dentro e fora, antes de dar a próxima dentada. Robert era o oposto de Neville. Branco, magro, tinha dedos finos, olhos claros e cabelos de palha. Tinha também um sorriso fácil, de lábios arregaçados que botavam à mostra as gengivas vermelhas.
Quando Neville apareceu na curva do Esmeralda, Robert jogou no lixo o caroço da maçã e se juntou a ao mulato. Da janela da padaria, Thaila viu os dois amigos se afastarem. Ela era morena de pele, com cabelos pretos grossos, olhos redondos, lábios cheios. Seu rosto não era propriamente bonito, apesar dos lábios carnudos, mas ela toda formava uma figura agradável que, quanto mais se olhava, mais se gostava. Sua pele tinha cheiro de bolo saído do forno.
Thaila queria ir junto com os dois amigos, que se afastavam em direção ao Esmeralda. Não para se tornar uma guerreira; ela sentia dó até dos bichinhos que ela mesma fazia com pão e açúcar na padaria. Doía-lhe a garganta cada vez que via alguém arrancar a cabeça deles com os dentes. Thaila nunca quis empunhar uma espada, erguer um escudo. Ela só queria estar junto de Neville e de Robert.
Os três cresceram juntos. Thaila não se lembrava, mas o pai sempre contava como foi que Robert entrou para a vida deles.
— Ele fugiu do orfanato — contou o padeiro — e veio morar no nosso telhado, que nem um gatinho com rabo quebrado.
O padeiro não era franês. Tinha mãos grandes e gestos lentos, a pele cor de cobre típica dos eslarianos. Usava óculos que aumentavam a circunferência de seus olhos gentis. Tinha nome, mas ninguém usava. Debur inteira o chamava: O Eslariano. Ele era grande amigo de Maëlle, frequentava a biblioteca, tinha sempre um livro nas mãos.
Thaila gostava de ver as mãos do pai trabalhando pão. Ele amaciava a massa com tanto carinho que o pão quase derretia, como um cachorrinho sonolento. Thaila imaginava as mãos de Neville manuseando massa. As mãos de Neville eram mais escuras que as do Eslariano, os dedos, mais longos. Thaila imaginava aqueles dedos quebrando ovos, acariciando farinha. Quando o pai se aposentasse, ficaria o Eslariano na biblioteca de Maëlle e Neville tomaria seu lugar em frente ao forno quente. As mãos de Neville estavam sempre quentes.
Quando Thaila pensava essas coisas, esquecia-se de Robert, mas Robert sempre dava um jeito de invadir sua imaginação. Ele aparecia de repente na porta, projetando uma sombra de gato com rabo quebrado. Ou batia com a unha na janela, pedindo para entrar. Thaila não conseguia imaginar Neville sem Robert.
Ela entendia por que Neville decidiu se tornar soldado. Ele era filho de soldado e o pai havia treinado com ele desde sempre na colina atrás da casa onde moravam. Robert muitas vezes treinava junto, mas sempre como brincadeira. Ele, sim, tinha lugar na padaria. O Eslariano ensinou todas as suas receitas, todas as técnicas, a gentileza com que se devia tratar os ingredientes, o tempo de forno.
Para que servia um soldado em Baynard? Soldados deviam proteger seu país, mas isto era uma guerra civil e Baynard não era um país. Quanto mais eles lutassem, mais eles quebravam a Franária.
Do lado de fora, Thaila viu Maëlle parada no cruzamento, ombros caídos e rosto voltado para o filho que ia embora.
Se não fosse aquele pai horrível, Neville não sentiria necessidade de se tornar soldado. Talvez virasse padeiro. Atrás de Thaila, o Eslariano ajeitou os óculos redondos com o punho. As mãos estavam enfarinhadas. Se o Eslariano sofresse um trauma que o debilitasse de corpo e mente, o que ela faria? Como foi que o pai de Neville, o guerreiro mais corajoso de toda Baynard, respeitado pelos soldados, temido até por Fulbert de Patire, se tornou o que ele é hoje?
— O pai de Neville era um homem honrado — ela falou em voz alta.
— Ainda o é — disse o Eslariano. — O pai de Neville jamais traiu ou desobedeceu Henrique de Baynard. Ele trouxe o bushido para o exército baynardiano. A partir do momento em que ele jurou lealdade, ele pertenceu ao rei.
Neville não se deixaria pertencer a ninguém. No entanto, ele estava indo se ajoelhar aos pés de outro homem. Neville alguma vez quebrou uma promessa, por menor que fosse? Thaila não se lembrava.
— Robert também é honrado — disse Thaila.
O Eslariano descansou as mãos sobra a massa crua e examinou a filha com os olhos gentis arredondados. Por mais desconexas que fossem as frases de Thaila, ele sempre respondia como se soubesse exatamente o que se passava no diálogo interno dela.
— Robert é honesto — ele disse. — Não é a mesma coisa. A honra é uma corrente invisível que o homem inventou para aprisionar sem ferros.
O Esmeralda engoliu Robert e Neville. Pela primeira vez na vida dos três, eles não faziam algo juntos. Eles entraram no Esmeralda e Thaila ficou para fora. Ela correu para a porta.
— Aonde vai? — perguntou o pai.
Thaila já estava na rua.
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A Boca da Guerra
FantasiUma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...