Depois de alguns segundos, resolvi que estava cansado demais para ler uma carta tão longa, e a deixaria em uma pilha separada para ler com calma. Mas enquanto tomava essa decisão, estava já lendo a metade da primeira folha.
A carta era de uma mulher de 32 anos, que tinha um filho bebezinho ainda, morava com o ex-marido em uma cidadezinha obscura nos arredores de São Paulo. Esclarecia na carta que não esperava que eu respondesse, mas caso o fizesse ela prometia jamais mencionar a ninguém, até mesmo porque ninguém sabia que ela estava escrevendo. Dizia que sentia falta de conversar com pessoas novas, mas desde que tivera seu bebê e a relação com o pai do bebê desgastou, não tinha mais a oportunidade de conversar com gente nova. Apenas com seus amigos de sempre via internet, e que já estava cansada deles. Explicou na carta que por mais que fosse interessante o personagem que eu interpreto, se interessou mais por eu mesmo, pelo lado artístico, principalmente depois de ver as fotos de uma exposição fotográfica minha, e que o que a chamou a atenção foi eu dizer que me interessava em extrair a beleza de coisas grotescas e desagradáveis. Dizia que via muitas coisas em comum comigo que raramente conseguia ver com outras pessoas, e isso a estimulou a escrever. Havia um aviso bem sério de que ela tirava xerox das cartas que me enviava, como garantia, caso eu não lesse as cartas, de que as palavras dela não acabassem perdidas em um grande vácuo.
Haviam duas pequenas flores de origami guardadas dentro do envelope, feitas com o papel metálico que reveste os maços de cigarro. Achei aquilo curioso, e segui a leitura.
Ela era uma espécie de "artista constantemente insatisfeita", como se descreveu. Tocou violino, fez canto lírico na juventude e por mais que fosse muito talentosa em ambas as práticas, não gostava do clima "esnobe e ridiculamente elitista" desse meio. Gostava de blues, literatura, principalmente beatnik, poesia (chego mais perto desse tema depois), também teve um período em que fazia pintura a óleo, mas abandonou por ter um bebê e não poderia expor o filho aos vapores de solventes. Ela e o ex-marido faziam parte de um pequeno motoclube, mas ela já não era mais membro, por discordar de algumas opiniões que eram comuns entre os integrantes. Também era bailarina de uma variação de dança do ventre (ela dizia na carta que adorava dança do ventre, mas odiava as músicas, e ficou feliz quando soube que havia uma variação que a permitia escolher músicas fora daquele clima arrastado e lamentoso das músicas árabes), e esperava o filho estar maior para voltar à faculdade, pois havia deixado uma pós-graduação de lado para cuidar do bebê. Me parecia que ela era uma curiosa, que se aproximava das pessoas por pura curiosidade, dando-se ao direito de se afastar quando bem entendesse. Achei interessante o desapego fácil que ela tinha com situações que não a beneficiavam. Ou apenas a entediavam.
Explicava na carta que gostava de escrever à mão, e que lamentava que a arte de escrever cartas estivesse definhando e que aos poucos o correio se resumia a um mero serviço de entregas de encomendas, e em breve canções como "Mr. Postman" perderiam completamente o significado.
Li aquela carta inteira me divertindo, todas as 10 folhas, frente e verso, como se estivesse ouvindo alguém sentado ao meu lado contando todos os seus devaneios à medida em que viessem à mente. Talvez fosse assim que ela escrevia. Encerrava a carta dizendo que o filho havia acordado de seu cochilo da tarde. Dia seguinte gravamos pela manhã, e eu esqueci minhas falas mais que de costume, porque alguns trechos da carta invadiam minha concentração. Voltei para o trailer durante a tarde e depois de almoçar fui terminar de colocar as correspondências em dia, mas deixei aquela carta separada de todas.
Durante os próximos dias, toda chance que eu tinha de alguma folga, estava lendo e relendo aquela única carta. Todo dia que chegavam mais correspondências, separava uma a uma procurando uma nova carta daquela moça, mas não chegavam. A próxima carta veio apenas duas semanas depois. De novo, eu me prometi que a leria na manhã seguinte, enquanto já estava terminando a primeira página.
Lembro que na carta, ela escreveu sobre seus estudos, estava relendo-os e sentia saudades de quando passava longas horas na madrugada escrevendo. Mas mesmo assim, adorava cuidar do filho, que crescia e estava cada vez mais esperto, e ela passava longas horas cantando canções antigas e criando atividades para ele. Achava aquilo interessante, um pouco até pitoresco. Ela podia comprar brinquedos para ele, mas preferia fazer. Chegou até a me mandar um "desenho", que cheirava a morango. Estranhei, porque eram apenas borrões de tinta que se misturavam em algumas partes do papel, e o cheiro era forte. Mas depois estava explicado: era uma "obra de arte" de seu filho, ela misturava iogurte com corante e dava para o filho brincar como se fosse tinta.
De qualquer forma, lembro que nesta carta ela mencionou o livro preferido, "As Flores do Mal" de Baudelaire, e o poema favorito...como se chamava? Lembro que ela disse que era a declaração mais romântica que já havia lido (ou que ao menos, ela assim o considerava)...ah sim, "Uma Carniça". Quando li o título fiquei em dúvida se seria belo mesmo ou se ela era mais maluca do que eu pensava, mas ao ler o poema, ela tinha razão. Era sim, muito bonito. Grotesco, mas belo. Exatamente como eu (e ela) gostava.
Ainda tenho essa carta guardada. Era como se eu estivesse assistindo a uma peça, um monólogo, e só havia eu mesmo na plateia. Lia cada palavra, cada linha de pensamento, os poucos relatos que ela fazia sobre o dia a dia dela (segundo ela mesma, não tinha muita coisa interessante acontecendo que valesse a pena contar).
Ela nunca falava do ex-marido. Só sabia que ela ainda morava na casa dele, e que não tinha nenhum interesse nele, mas não tinha para onde ir, então ficou morando lá. Parecia que o cara era boa pessoa, deixando-a ficar lá mesmo que fosse mais por causa do filho. Concluí, mesmo que um pouco incomodado (talvez fosse o primeiro sinal de que eu via algo nela, lembrando agora. Sentia mesmo, admito,uma pontada de ciúmes), que haviam as possibilidades: ou ele não era ex marido, de fato, e estavam juntos e ela escrevia escondido dele, ou de fato, ela ficasse mais tempo sozinha com o filho, e o ex quando estava lá não fazia diferença nenhuma para ela. Sem eu perceber, torcia para que ela não estivesse mesmo dando a mínima para ele.
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As Cartas da Problemática
FanfictionO que aconteceu antes de "Problemática"? Norman conta como conheceu Ally. "foi um gesto mínimo, de abrir uma carta entre milhares de outras. Outro gesto sem pensar, sem importância, que mudou tudo."