14. Pausa para um cigarro

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Por algum motivo, aquela música me fez sentir inquieto, apesar de já a conhecer há anos. Deveria ser uma das preferidas dela, pois estava atenta a cada parte da letra, e enquanto conversávamos às vezes ela sussurrava para si algum trecho. Ela parecia radiante com a música, e eu me distraía observando enquanto os olhos dela brilhavam, creio que até ela estava contendo algumas lágrimas. Mas estava feliz. E era lindo ver ela assim.

Quando terminaram a canção, ela sorriu e se virando para eles, aplaudiu e colocou as duas mãos sobre o peito, agredecendo a eles. O baixista piscou e sorriu, e disse algo a ela no microfone, mas não sei o que era.

- Depois de tanto se falar de cigarro nessa música, eu mataria um para poder fumar aqui...

- Não pode?

- Eu sei...é um saco...10 anos passaram desde quando começaram com essa lei anti-fumo e eu ainda não me conformei.

Fiz um gesto chamando o garçom, e perguntei onde poderíamos fumar. Havia uma ala aberta nos fundos do bar e fomos até lá. Me sentei em um banco de madeira enquanto ela ficou em pé.

- Você não fica muito sozinha?

- como assim?

- Estava pensando agora...das coisas que você me escreveu, você conhece tanta gente por aqui...e por que se afastar em uma outra cidade?

- Ah...isso...bem. Eu gosto de ficar sozinha. Inclusive sinto falta disso às vezes. O Ian ainda é um bebê, mas ainda assim é companhia...é horrível uma mãe dizer isso, mas...felizmente o pai dele leva ele para passear às vezes e eu tenho alguns momentos...mas eu realmente gosto de ficar sozinha...

- E quando você morava aqui, era assim também? Imaginava que conhecendo tanta gente, que você vivia cercada de gente.

- Não, nunca foi assim. Eu moro sozinha desde os dezessete anos, e mesmo assim, sempre preferi sair para encontrar os amigos ao invés de recebe-los em casa. Prefiro que a minha casa seja um lugar para descansar depois de horas cercada de gente.

- Você nunca recebia eles em casa?

- Algumas vezes. Alguns poucos amigos que eu tenho mais consideração vieram algumas vezes, mas a maioria das vezes eu preferia encontrar eles em algum bar ou lugar que todos frequentavam, como o teatro, ou a galeria antigamente...

- Isso eu posso entender...e o que você fazia em casa?

- Algumas coisas a mais do que faço hoje em dia. Eu pintava, escrevia, a minha casa sempre parecia um enorme atelier. No quarto, eu escrevia, ouvia música. A sala tinha um pequeno cavalete e materiais de pintura. O outro quarto tinha partituras e um aparelho de som e um espelho, além de livros. Acho que só a cozinha e o banheiro escapavam dessa coisa de cômodo multiuso....

- E onde você dormia?

- No quarto ué....servia para escrever, ler, ouvir música e até para dormir....

- Lá que você escreve suas poesias?

- Algumas delas, ou contos, ou longas histórias, o que aparecesse...tenho saudades daquela casa...mas não dava pra continuar lá, infelizmente...

- Por que?

- Aconteceram coisas, e muita gente que eu não queria que me encontrasse nunca mais poderia voltar lá e me achar...na mesma época conheci o pai do Ian e me mudei para Osasco para a casa dele. Foi a primeira vez nesses anos todos que fui morar na casa de alguém.

- Aquela história que você escreveu, né....

- Exatamente. Cara babaca. Filho da puta.

- Filho da puta mesmo... - ficamos em silêncio por alguns minutos. - Posso pedir uma coisa? Espero que não esteja sendo invasivo.

- O que?

- Onde que ele te bateu?

- Eu contei. Foi um murro no maxilar. Fraturou na hora.

- Não parece daqui.

- Espera. - ela se sentou ao meu lado, virando de frente para mim. Levantou o queixo e apontou para uma cicatriz que ainda tinha uma espécie de borrão levemente escuro. - Foi aqui que fraturou. O soco pegou um pouco abaixo da boca. E fraturou essa parte toda aqui - ela indicou desenhando uma linha do canto direito da boca descendo até a linha do maxilar.

- Ah, agora estou vendo...isso deve ter doído - disse enquanto examinava a cicatriz. - Foi aqui que você operou?

- eu não operei. Acabei desistindo de operar porque formou um abcesso e precisei drenar várias vezes. E o cirurgião que me atendeu também não foi muito legal, e eu não estava legal na época.

- O que ele fez?

- Quando fui na primeira consulta ele reclamou dizendo que eu me envolvia com enrascada e agora ele que ia ter que consertar...não foi muito legal...

- Não foi legal? Absurdo isso...como ele diz uma coisa dessas?

- Pois é...estive cercada de babacas nessa época, creio. E ainda estava muito nervosa com o que tinha acontecido então acabei não voltando mais. Nem fodendo que eu iria confiar num cirurgião que diz uma coisa dessa para cortar minha cara enquanto eu estivesse dopada numa mesa de cirurgia.

- Eu também não iria confiar...

- De qualquer forma,isso faz muito tempo já...calcificou e não me trouxe problemas, então...

- Na verdade, mal se percebe a fratura...o seu sorriso continua sendo lindo mesmo assim.

E me interrompi aí mesmo. Ainda estava com os dedos segurando o queixo dela. Ela abaixou os olhos, e eu levantei, criei coragem e beijei-a. Ela fechou os olhos enquanto minha boca encostava na dela.

Não era a primeira vez que eu beijava alguém, mas com certeza nunca alguém me beijou daquele jeito. A boca dela era macia, e sua língua tocava a minha de uma forma que eu não queria mais que ela parasse, enquanto com as duas mãos eu segurava seu rosto. Sua mão pousou sobre a minha perna, e eu abri os olhos por um instante para ver seus olhos fechados, os cílios longos e escuros tremiam.

Ela segurou minhas mãos em seu rosto, e eu puxei a mão pequena e magra dela para segurar meu pescoço. Ela me beijava com mais força, puxando meu rosto contra o dela. Acho que ficamos pelo menos meia hora lá fora, não falamos mais nada. Eu tentava conter a respiração mas era inútil. Lembro de ela interromper o beijo e encostar a cabeça no meu ombro, do cheiro do perfume dela e que ela também respirava forte. Depois me beijava de novo e me abraçava. Não é difícil presumir que ficamos assim, em silêncio por pelo menos meia hora. Talvez mais. A contagem do tempo fica estranha nessas horas. Então ouvimos alguém chamar por ela na porta. Um dos amigos acenava para ela.

Ela interrompeu o beijo quando ouvimos o cara chamar o nome dela.

- Alê....estamos indo!

- Ah sim...poxa, legal rever vocês! - Ela disse enquanto se levantava. Segurou minha mão e me puxou para acompanha-la. Apresentou os amigos, e claro que eles pediram fotos e ela tirou fotos minhas com eles, sem nenhuma menção de que alguém tirasse fotos dela comigo. Quando Terminaram, ela se despediu com um abraço em cada um deles, e pediu a eles que não mencionassem a minha estadia lá por questões de segurança. Eles concordaram, e se despedindo mais uma vez, foram embora, e nos sentamos de volta na nossa mesa.

- Eles parecem gostar muito de você.

- Sim...eu gosto muito deles também...quando os conheci, cada um tocava em uma banda diferente, acredita? Aí todos se conheceram e formaram uma banda nova...e tem dado certo, eles têm tocado em vários lugares. Fiquei feliz que eles estão tocando aqui, devem receber bem.

As Cartas da ProblemáticaOnde histórias criam vida. Descubra agora