Passaram-se alguns meses em que não chegou mais nenhuma carta dela. Era uma espécie de diversão. Eu me acostumei com a inconstância, então, quando não chegavam cartas dela, por outro lado eu também não esperava mais. De repente, elas chegavam praticamente toda semana. Não sei o que acontecia exatamente, porque ela sempre era um pouco vaga sobre o dia a dia. Nessas cartas que chegavam em sequencia, soube que ela estava sozinha na casa, o ex-marido havia conhecido outra mulher e tinha ido embora morar com ela. Ela escreveu que se sentia aliviada, apesar de não gostar de ficar lá, estar completamente sozinha com o filho já parecia ser alívio suficiente por enquanto. E então, parecia que ela me escrevia todas as noites. Porque ela sempre colocava data nas cartas e em cada envelope, vinham cartas que eu colocava em períodos. Do dia tal até o dia tal do mês de Maio. Coisas assim.
Além de aliviada, ela estava feliz por estar voltando a trabalhar cada vez mais. Quando preciso, pegava um carro e ia para a casa da mãe em São Paulo, ou o ex-marido levava o filho para a casa dele, e ela trabalhava também como intérprete às vezes. Fiquei feliz por saber que ela estava se reerguendo, e eu era um espectador distante desses pequenos passos que ela dava.
A minha vida...bem...eu pensava que não tinha muito o que contar. Ela tinha acesso à internet e com certeza se digitasse meu nome no google saberia tudo que tivesse ali para saber. Eu nem sequer me preocupava com isso.
Então, quando estávamos chegando ao fim das gravações, pedi para minha RP, Jo, que separasse para mim as cartas que viessem dela. Deixei um envelope de uma das cartas com ela para que soubesse qual era o endereço, caso precisasse conferir. Era hora de voltar a NY, e ainda teria uma série de cons e eventos para comparecer.
Cheguei a pensar em enviar para ela uma carta com meu endereço em NY, mas talvez, eu pensei, isso poderia "quebrar" a graça da coisa. Não seria a mesma coisa do que ler as cartas e escondê-las debaixo do travesseiro no meu trailer na Geórgia. Não sei porque pensei assim, mas parecia fazer sentido na época.
Entretanto depois de uns poucos dias de volta em casa, depois de toda a correria de costume, pois o trabalho de NY ficava sempre atrasado, me lembro que naquele dia em particular, tinha assinado um contrato para um filme que gravaria não muito longe do set em Atlanta, negociado uma exposição e meu filho Mingus viria na manhã seguinte passar a semana comigo. Foi um dia corrido, mas eu cheguei em casa satisfeito por ter dado tudo certo. Estava exausto, então tomei um banho e me deitei. E dei conta de que naqueles dias todos, não tinha mais a carta dela debaixo do travesseiro. Em cada carta ela colocava as flores de origami em papel metálico de cigarro, e estas também, juntava uma por uma e colocava em um copinho que ganhei de uma fã. Senti falta de ler, me sentindo um idiota por não ter trazido nem mesmo a primeira carta, aquela com o poema. Na manhã seguinte, tratei de ir em uma livraria próxima do prédio onde morava, comprei um exemplar de "Flores do Mal", e marquei a página do poema "Uma Carniça". Era o mais próximo que tinha, e lia aquele poema sempre que deitava.
Mas a vida seguia, e mesmo que talvez ela estivesse escrevendo suas cartas regularmente, eu não sabia, e o pouco pensamento que voltava a ela, pensava em como ela deveria ser, ou se ela ainda estava diariamente presa na casa, saindo no máximo até o mercado da esquina por medo da vizinhança, ou se já havia resolvido sair de lá com a condição que tinha. Talvez ela tivesse voltado com o ex-marido. Talvez tivesse conhecido alguém.
Em retrospecto é engraçado quando lembro que tinha esse tipo de dúvida como se ela me devesse algo, pois ela nunca mencionou nenhum tipo de interesse desse tipo, nem nas entrelinhas.
O máximo que eu sabia era que ela gostava de muitas coisas que eu também me interessava, e que era uma mulher inteligente (ela chegava a traduzir poemas e contos que gostava para o inglês nas cartas, sempre que era algo que a empolgava, escrevia em português e a tradução em seguida, por exemplo), era determinada, e que podia ir de uma tristeza profunda para uma euforia insana. Sabia também que ela conhecia muita gente, boas e más, mas que se impunha uma certa distância, e de todas as pessoas que conhecia, apenas 5 ou talvez 6 destas pessoas eram autorizadas a frequentar sua casa, por exemplo. Tinha uma impressão muito boa do caráter e da capacidade dela, mas nenhuma impressão sobre sua aparência. E mesmo assim, já julgava que ela jamais se interessaria em outro aspecto além de um "leitor de cartas". Ela nunca dera a entender que permitiria que eu ou qualquer outra pessoa se aproximasse mais do que ela se aproximava.
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As Cartas da Problemática
FanfictionO que aconteceu antes de "Problemática"? Norman conta como conheceu Ally. "foi um gesto mínimo, de abrir uma carta entre milhares de outras. Outro gesto sem pensar, sem importância, que mudou tudo."