30. Um pequeno sacrifício

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Dois meses depois, consegui outra folga, e já estava de novo voltando para o aeroporto. Seria uma estadia curta, apenas cinco dias, mas valia a pena.

Mais uma vez ela foi me buscar no aeroporto e mais uma vez eu estava escondido no saguão, quando ela chegou com o Ian no colo. Ele estava maior, e eu podia ver que não era mais tão fácil para ela carregar ele no colo.

Mas legal mesmo era que nesta segunda vez, eu já estava mais familiarizado ainda com ela, com o Ian, os cães, a casa, tudo. Apesar disso, percebi que estava tudo um pouco diferente. A casa estava mais vazia. Ela, por outro lado, parecia mais animada, não tinha aquela expressão de cansaço que eu via todo dia. Talvez ter avisado com mais antecedência dessa vez tenha sido melhor.

Sentia falta dos cães. Uma vizinha dela havia perdido o cão, que morreu de velhice e de uma luta contra um câncer, e pelo que eu sabia, ela se afeiçoava cada vez mais a eles. As duas casas eram uma ao lado da outra, então Ally e a vizinha deixavam os portões abertos. Era bem curioso: ao invés de Ally doar os cães, eles aos poucos, se mudaram para a casa da frente. Mesmo assim, o portão ficava aberto, para o caso de eles mudarem de ideia.

Era engraçado, eu voltava para lá por alguns dias, e ficávamos a maior parte do tempo na casa dela. Voltamos algumas vezes para o teatro, mas ela sempre preferia que ficássemos em casa. Para mim, tudo estava bom. Não me importava em ficarmos na casa dela, brincando com o Ian. Não era só por ela que eu me apaixonava, mas o garoto também era um doce de criança, que eu adorava trazer brinquedos, ou ajudar ela a construir. Desta vez ela tinha juntado algumas caixas de fralda e passamos algumas madrugadas em claro pintando pequenas estradas, montando pontes e casinhas com pedaços de papelão e caixas de remédio.

- Tanto trabalho, e com certeza ele vai destruir tudo em questão de segundos - lembro que ela comentou uma vez enquanto estávamos colando uma ponte de papelão que custou algumas horas de pesquisa para fazermos de forma que ficasse firme.

- Pior que tem razão. E está tão bonito...

- Será que não seria melhor se a gente guardasse e esperasse ele ter idade suficiente pra brincar?

- É uma ideia...

- Por outro lado, eu acho que seria uma pena perder a chance de ver ele se divertir. Mesmo que seja destruindo tudo. O King Ian destruindo todo o vilarejo...

- Então deixe ele destruir. Quando ele estiver maior e você quiser fazer de novo, já sabe como fazer.

- Tem razão. Além do mais a ideia era fazer essa pista pra ele, não pra mim. Ele tem o direito de fazer o que quiser com ela.

E lógico que na manhã seguinte, deixamos no meio da sala e depois de todo o ritual matinal, acordar, trocar fralda, vestir roupinha e mamar, levamos ele na sala. A pista que fizemos por duas madrugadas a fio foi pisoteada com sucesso em poucos minutos. Ele brincou tanto naquela manhã que logo depois do almoço estava em uma soneca pesada. Estávamos eu e Ally na rede no jardim. Ela deitou no meu colo e ficamos balançando ouvindo os pássaros brincando nas árvores do pequeno pomar.

Conversávamos de tudo. Sobre o que estudamos, disputávamos quem tinha mais histórias terríveis de mau comportamento na escola durante a adolescência. Era (ainda é) impressionante como conversamos por horas a fio. Sobre tudo. Histórias pessoais, opiniões, notícias de jornal, músicas que gostamos, tudo. Tudo que se pode imaginar.

A única coisa que ainda me incomodava, era que eu sabia que quando eu ia lá, ela protelava os estudos. A tradução e as pesquisas ela dizia que deixava adiantado quando eu avisava o dia que eu estaria chegando lá.

Seria tudo tão mais fácil se ela morasse em NY comigo. Ela tinha o suficiente para se dar muito bem lá. Tinha todas as ferramentas que poderia precisar ali, à disposição, era só questão de ela se deslocar até lá. Mas ainda insistia em ficar. Insistia que não podia ser fácil. E podia ver de longe que só de lembrar tudo que ela deixava acumular para depois, só de lembrar já a deixava exausta.

- É um pequeno sacrifício, mas que não me custa nada. - ela dizia. Mas o jeito que ela aparecia cansada depois que eu voltava para casa e conversávamos via Skype me diziam o contrário. 

As Cartas da ProblemáticaOnde histórias criam vida. Descubra agora