4. Contos Fantásticos de Ally

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Anos atrás, bem antes de ela casar e engravidar, ela ficou presa a um indivíduo. Do que eu entendi, ela morava sozinha na época, e ao se envolver com o cara, ele determinou que ia se mudar para a casa dela e que seriam namorados. Ela não queria, mas de alguma forma o homem a manipulou e ela aceitou com medo de que ele prejudicasse alguém que ela amava. A mãe, ou talvez seus animais de estimação (ela tinha 3 gatos e uma cachorrinha na época). Aconteceu que ela, como diz até hoje, não é uma pessoa fácil de lidar, e ter alguém debaixo de seu teto determinando como ela deveria agir, e falar se tornou um problema.

Em poucos meses de relacionamento forçado e abusivo com este homem, ela perdeu a paciência, e nenhuma ameaça dele a intimidou mais. Segundo ela, ela disse que ele poderia matar seus animais, ou até mesmo achar um jeito de fazer com que a família dela a odiasse, que ela não se importava mais, desde que ele fosse embora. Quando li esta parte não pude conter um "isso, garota!!!". Fiquei orgulhoso de uma mulher que eu nem sequer conhecia. Não fazia idéia nem mesmo de qual seria a cor dos olhos dela, acredita?

E então, que veio a parte ruim.

Lembrando mais uma vez: nada disso era da minha conta. Eu não conhecia ela. Não sabia nada a respeito dela além do que ela me escrevia. Se um dia a visse na rua, certamente passaria reto sem nem sequer desconfiar que era ela quem me escrevia aquelas cartas.

Mas mesmo assim, fiquei puto. Fiquei puto porque eu li, e apesar de parecer ingenuidade minha, do que eu li e da forma que ela escrevia, eu de alguma forma sabia que ela não merecia aquilo. Ela não merecia ser manipulada, nem machucada. Eu sabia que ela não era a pessoa mais dócil, que era teimosa, e até mesmo um pouco mandona, mas, quem não é assim quando se trata de saber escolher o melhor para si?

Mesmo assim, ela descreveu em detalhes como o cara pediu desculpas a ela durante essa briga. Como ela tentou também se acalmar, não por ele, mas porque detestava aquele clima tenso que se estabeleceu. Como ela respirou fundo e disse que ia tomar um banho quente e tentar se acalmar. E ele foi atrás dela enquanto ela entrou no quarto para pegar uma toalha. Ela se virou para responder a algum xingamento que ele fez, e foi então que ele estava já com um soco pronto, e ela só viu a mão dele levantar, e atingir violentamente no rosto dela. Ela caiu semi consciente, até que recobrou a consciência, escutou ele na sala gritando, furioso com ele mesmo (apesar de ela não acreditar nisso por um segundo sequer). Sentiu o sangue pingando do queixo, e se levantou e viu que estava sangrando pela boca. Ela dizia que queria poder esquecer isso pelo próprio bem. Mas que não conseguia, e que sentia uma raiva se agitar dentro dela sempre que lembrava. E graças a isso, o ano seguinte foi uma espécie de ano sabático para ela. Estava furiosa, desconfiada, amarga. Até o momento, disse ela na carta, ela havia sido uma consumidora "passiva" de cocaína. Nunca usava por muito tempo, ás vezes aparecia na noite e ela usava, mas depois esquecia. Tratava de ter o máximo cuidado com drogas porque tinha muito medo de viciar.

Depois disso, ela contou que jogou tudo para o alto. De consumidora passiva ela passou a ser a consumidora mais ativa que se podia imaginar. Ela nunca mais saía sem antes comprar pelo menos 5 papelotes. Durante um ano ou dois, ela gastou uma quantidade imensurável de dinheiro apenas com drogas e bebida. Tudo por causa de um soco. Seus amigos ainda a amavam, mas ela parecia perdida, e desde que ninguém tocasse nas feridas, ela ainda era a mesma de alguma forma.

Segundo ela, em algum momento ela sentiu que as drogas a deixavam mais deprimida do que já deveria estar por conta própria, e então, desistiu. Aos poucos, foi se afastando do circuito de bares e músicos que frequentava. Aos poucos se afastou, e assim, conseguiu parar com as drogas. Sozinha.

Quando li esse relato, fiquei em choque por alguns momentos. "Alguém feriu a minha garota e eu não pude fazer nada", lembro de ter pensado. Mas que garota? Quando que ela fora minha? eu não sabia absolutamente nada sobre ela!

Mas sabendo por ter visto de perto muita gente se afundar nas drogas, fiquei impressionado que ela tenha apenas resolvido que não estava fazendo bem o vício em cocaína, e simplesmente se afastar e parar. Pelo menos de acordo com a minha experiência, sabia que precisava ser muito forte para conseguir se libertar assim, por conta própria. Força e consciência.

Pensei estar enlouquecendo. Alguma coisa na narrativa dela me sugava para o mundo dela, e eu lia e relia suas cartas, montando uma linha do tempo na minha cabeça, tentando entender em qual ponto ela estava. Cada carta, cada narrativa, era uma mistura absurda de fatos presentes, lembranças antigas e outras não muito antigas...ela não falava nada de seus planos futuros. Parecia que ela apenas olhava para trás, e depois para onde estava e dava o próximo passo como se nada daquilo tivesse importância.

Mesmo assim, eram cartas que eu apreciava ler e reler sempre que podia. Todas as noites em que eu ficava no trailer, pegava estas cartas e lia uma por uma. Era para mim como se uma visita me esperasse lá dentro.

Era uma espécie de segredo meu, acho que sentia um tipo de lealdade com ela, e assim como ela não contava a ninguém que as escrevia, eu também não contava que lia. Só para ser justo, talvez.

As Cartas da ProblemáticaOnde histórias criam vida. Descubra agora