10. As Cartas Que Escrevi

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Lia e relia aquelas cartas, e as fotos ficavam guardadas debaixo do meu travesseiro. Duvido que ela tivesse alguma foto minha debaixo de seu travesseiro, mas para mim, era o lugar mais seguro que poderia guarda-las. Uma noite, eu havia chegado em casa e estava exausto e bêbado. Deitei na cama e fui pegar a foto, e deixei-a cair.

Não tinha reparado antes, mas havia algo escrito no verso da foto.

Era o endereço da conta do Instagram dela. Por um momento pensei "ah, legal" e me virei para dormir. Claro que não durou um minuto, e peguei o celular, para procurar mais. Mas a conta dela estava bloqueada.

Pensei em mandar uma solicitação, mas não sabia se seria bom. Afinal tinha fãs que vigiavam a minha conta mais do que eu imaginava alguém ser capaz. E ela tinha um filho pequeno. Não sabia ao certo como ela lidava com a exposição dela mesma e do filho.

Ao invés disso, na manhã seguinte, dei continuidade à tradição que já estava meio estabelecida, de comunicação à moda antiga. ainda tinha muitos assuntos nas cartas dela que eu poderia responder.

" Olá, Alessandra,

Gostei muito das suas fotos, e parabéns pelo seu filho. É Ian o nome, certo? Ele é lindo, e se puder tomar a liberdade, o sorriso dele é lindo como o seu.

Desculpe por ter sido breve na carta anterior, eu não me lembro da última vez que escrevi uma carta. Se é que escrevi alguma em algum dia na vida.

Eu nunca prestei muita atenção em literatura, mas gostei muito da poesia que você mencionou em uma de suas primeiras cartas, cheguei até a comprar um exemplar do livro, Flores do Mal. é o seu preferido, ele? E fiquei feliz em saber que você está voltando a estudar, e gostei muito da sua ideia para o pós doutorado. Eu mal cursei a faculdade, mas é algo que eu gostaria de ter feito. Mas acho que na época eu era jovem e impulsivo demais, creio que acabou saindo da minha rota.

Mande-me mais notícias suas. Espero que consiga sair de onde está e que continue recebendo o apoio que tem recebido das pessoas ao seu redor. Tive a mesma sorte com minha ex-mulher, sempre pude contar com o apoio dela e ela com o meu (apesar de eu achar que ela não precise).

Ah, eu tentei acessar seu instagram, mas ele está bloqueado, e não sei se seria bom para você se alguém visse que eu a sigo por lá. Talvez tenha outro jeito?

Abraços

N.R."

Meio bobo, não é? mas era o que eu conseguia escrever. De certa forma, eu me sentia um pouco intimidado. Às vezes, sou tímido, e também não costumo falar muito, prefiro ouvir. E ela tinha sempre muito a dizer. Estava mais preocupado em escrever para assegurar ela de que não estava falando sozinha, pois queria que ela continuasse a escrever. Sei lá, o jeito que ela escreve, não sei explicar muito bem, mas era fácil de ler e de entender nas entrelinhas como ela deveria estar se sentindo. Sempre achei curioso que mesmo tendo circulado por toda parte meu relacionamento com a Cecilia, ela nunca tocou nesse assunto. Ou sobre o meu filho. E era nesse silêncio que ficava bem claro, pelo menos assim parecia para mim, que ela não se interessava muito em debater o que eu fazia, e sim em querer saber quem eu era. Ou que eu soubesse quem ela era.

E assim seguiram, durante muitos meses. Eu contaria pelo menos um ano e meio trocando correspondências com ela. Lógico que eventualmente eu consegui acessar o instagram dela, e acompanhei um pouco mais a vida dela em uma cidadezinha minúscula em outro continente. Vi fotos dela com os amigos no teatro, com amigos que ela fez durante uma festa de carnaval, a mãe dela e o filho. O cenário ao redor dela e como ela interagia com as pessoas e os lugares. Até mesmo o lugar que ela descrevia em inúmeras cartas, um lugar que ela chamava de "paraíso particular". Ela viajou de moto para lá sozinha em um feriado que o filho passou com o pai. E mesmo com alguns problemas na transmissão, acompanhei todo o trajeto que ela fez sozinha pilotando uma Intruder 250. Sim, além de tudo, ela pilotava, e arrisco dizer até hoje, ela conhece mais sobre motos e carros do que eu jamais consegui na vida.

O tal "Paraíso particular" era um vilarejo chamado Visconde de Mauá. Creio que só quem vive no país dela que conhece esse lugar, eu mesmo nunca ouvi falar até conhecer ela. Sempre me lembro que foi a primeira coisa que escrevi na próxima carta que respondi a ela. Que caso eu fosse um dia para lá, queria conhecer aquelas cachoeiras de perto.

Meados de outubro, recebi uma carta dela dizendo que no mês seguinte era seu aniversário, mas que ela se sentia cansada demais para querer fazer qualquer coisa, e que seu único plano era deitar na cama e assistir seus filmes preferidos e só levantar no dia seguinte. Anotei na minha agenda o dia, e uma semana antes do dia de seu aniversário, enviei para ela uma caixa pequena com flores de tecido roxo que encontrei em uma loja em Nova Orleans. Eu sabia que ela era apaixonada pelas histórias daquela região. Segundo ela, a caixa chegou na véspera do seu aniversário, no dia 13 de novembro, que caiu numa sexta -feira aquele ano. Não podia ser mais apropriado para aquela maluca, que assim como eu, era apaixonada por temas sombrios e belos.

No Natal ela me enviou uma caixa de música que segundo ela, tinha sido sua primeira caixinha de música, e que nunca mais encontrou caixas de música como aquela. O tema da caixinha era uma sonata de Liszt que segundo ela, era um compositor tão "amaldiçoado" quanto o Baudelaire era um poeta maldito. Coisas que só nós dois entendíamos o quanto significava. Quer dizer, nunca conheci ninguém que entendesse como nós.

E no meu aniversário ela me mandou uma carta, contendo uma letra de uma música, e dois poemas seus. Além da carta tradicional de sempre, contando seus devaneios e o que acontecia de novo em sua vida.
E assim seguimos, às vezes ela me mandava cartas simples, outras, presentes, até mesmo fotografias que ela tirava e achava que eu fosse gostar, mandava imprimir e enviava. Eram gestos genuínos de carinho que eu gostava de responder sempre que podia. Aos poucos eu também ganhava mais confiança e sempre via algo que pensava que ela poderia gostar e enviava para ela. Mas nem sempre eu enviava uma carta junto, muitas vezes ainda me bloqueava sem saber o que dizer. Mas, creio que ela entendia o gesto.

As Cartas da ProblemáticaOnde histórias criam vida. Descubra agora