8. Cinco Cartas

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Foi no mês seguinte, que eu estava em casa trabalhando quando recebi uma ligação da minha querida Jo, a melhor RP que já conheci na minha vida. Ela disse que tinha algumas correspondências que chegaram, e que havia separado algumas para me entregar.

- Não sei muito bem o que você pretende, sr. Reedus, mas conhecendo-o como conheço em todos esses anos, achei que ia gostar de receber estas cartas.

Abri a caixa de papelão pequena que ela trazia. Haviam claro, os boletos de costume, os convites para todo tipo de evento, algumas confirmações para a exposição que seria em breve, e um maço pequeno, nem chegava a ser um maço. Contei naquele maço 5 cartas. Apenas cinco cartas. No momento que identifiquei aquela letra inclinada cheia de pontas alongadas e curvas, me escapou um sorriso, e quando o percebi, olhei para Jo esperando que ela não tivesse reparado, mas ela também sorria, se divertindo com meu constrangimento. Lógico que fiquei vermelho, senti meu rosto ardendo, mas agora já era tarde.

- Depois de ponderar dois pedidos similares, de separar as cartas desse endereço, e o senhor pedir para eu enviar outra no mesmo endereço, quando chegaram as respostas, pensei que ia gostar de recebe-las aqui, ao invés de esperar meses até voltar para Geórgia.

- Fez bem, Jo...um dia quem sabe eu explico melhor. No momento não sei o que tenho para explicar...

- Para mim?Não, o senhor não tem que explicar nada para mim. Apenas fico feliz que pude ajudar.

- Foi de enorme ajuda, Jo....obrigado, mesmo!

Abracei-a, porque realmente sentia uma gratidão enorme pelo carinho e cuidado que ela tinha. Me sentia o cara mais afortunado por ter a lealdade dela tão gratuita, sem esforço. Alguma coisa eu devo ter feito de bom nessa vida.

A primeira carta, datada de um mês atrás, ela contava algo sobre ter retomado a pós graduação, em um acordo com a mãe e o ex-marido. Estava bastante feliz e acabou me contando um resumo em 5 páginas escritas frente e verso todo o tema da pós. O que já havia feito, o que estava pesquisando e o que queria provar. Também contava sobre um evento curioso, em que a mãe dela gentilmente a "ordenou" que saísse por uma noite, dizendo que não a reconhecia mais, e que por mais que ela gostasse de ficar em casa estudando e cuidando do filho, que precisava ter alguma vida. Ela foi ao teatro que era de um grupo de amigos dela. Contava com aquela narrativa só dela, que cria um cenário e implanta ele completo na imaginação de quem lê. Passou a madrugada, boa parte dela deitada no colo de um amigo no sofá nos fundos do teatro, que durante anos ela apenas conhecera pouco mais de "oi e tchau". Mesmo assim, ela dizia que sempre tivera um enorme carinho por ele, e o admirava pela inteligência e criatividade. Então, era ele o "dono" do teatro. Dramaturgo, diretor e ator. Também era compositor da maioria das músicas que cantava com sua banda. Ela contou que conversou com ele a noite toda, e que não esperava que ele fosse uma pessoa tão gentil, que a tratou como se ela que fosse a convidada de honra, sendo que a figura admirada e respeitada por todos ali era ele. Senti uma inevitável pontada de ciúme, e me perguntei se ela estaria escolhendo as palavras com que me contava esse relato para não denunciar um eventual caso em que estivesse ingressando.

Mas se foi isso, escolheu sabiamente as palavras, pois por mais que eu lesse e relesse, não havia nada que pudesse insinuar algo assim além do fato de etsar deitada no colo do cara a noite toda. Ele bem poderia tê-la beijado, ou ela poderia desejar que ele o fizesse. Mas isso só ela mesma saberia. Marco. O nome dele era Marco. Ela contou todas as peças que ele escreveu e sobre as idéias sobre poesia que trocaram, e que saíra de lá quando já estava amanhecendo o dia, e ele chamou um uber para busca-la, abriu o protão do teatro e a levou até o carro, se despedindo com um longo abraço. Li este trecho, me lembro bem, com uma pressa incrível, como se ela estivesse me contando ao vivo, e eu esperava que ela terminasse o relato e mudasse de assunto o mais rápido possível. Odiei imaginar aquela pessoa que minha mente ainda tinha uma imagem definida se deitando e abraçando outro homem.

Terminava a carta dizendo que tinha dormido feliz com a noite que tivera, e por ter reencontrado seus amigos preferidos, e se sentia feliz por apesar de todo aquele tempo em ostracismo, que eles ainda a recebiam de braços abertos. Bufei, incomodado ainda com a imagem indefinida de uma certa mulher que nunca vi deitada no colo de outro homem que também nunca vi em um sofá de um lugar que nunca estive na vida.

- Certo, chega. Vamos à próxima.

Não me lembro muito bem do conteúdo da carta seguinte, mas a terceira carta, surpreendentemente não era muito longa. Tinha apenas 3 páginas. Dizia apenas que ficou feliz em receber a minha resposta, por que se perguntava se não era ridículo da parte dela escrever regularmente e enviar suas palavras para um imenso vácuo. Também dizia que percebia minha razão, pois afinal, ela sabia a meu respeito o suficiente para enviar uma carta, e por outro lado, eu não sabia nada a respeito da existência dela para poder escrever para ela qualquer coisa sem que ela se manifestasse primeiro.

"Eis a grande diferença entre uma pessoa normal e uma celebridade, finalmente! Se me perguntar, eu vejo que tenho uma espécie de vantagem sobre você, apesar de estar ciente que uma vez que tem meu nome completo, não seria dif[icil encontrar o que quisesse a meu respeito só usando seus "poderes" , anulando a minha única vantagem sobre você."

Eu lembro disso porque não pude conter uma gargalhada quando li. Tanto pela observação e o tom divertido que usava, como pela surpresa com a perspicácia dela. No mais a carta contava sobre seu filho estar agora começando a frequentar uma creche e um trabalho voluntário que ela esteve envolvida, para refugiados da África no Brasil.

Sempre que podia, levava doações para a ong que os abrigava e levava o filho para interagir com eles. Ainda mantinha contato constante com a família de refugiados que fundou a ong. Dizia ela que eram pessoas muito bondosas e que ficava feliz em poder ajudar, mesmo ela não tendo muito como ajudar. Mas nem que fosse para levar uma muda de roupas e um cobertor, ela dava um jeito e ia. Fazia questão de levar o filho junto, queria que ele soubesse desde muito pequeno que por mais que não tivessem muita coisa, tinham mais que o suficiente se vissem pelo lado de alguém em condições piores. Aquilo me soou como uma espécie de provocação, mas realmente, se quem tinha pouco não hesitava em dividir o pouco que tinha, o que me custaria, ou a outros com tanto ou mais dinheiro que eu?

A outra carta ela relembrava os tempos em que estudava música, dizia que por causa de um outro relacionamento abusivo que a iludia, acabou abandonando um início de carreira como cantora lírica aos 17 anos, e que se arrependia todos os dias que lembrava. Mencionava alguns trechos de óperas e peças que ensaiara, e que mesmo depois de dez ou mais anos ainda estavam frescos em sua memória, e outros devaneios.

Felizmente dessa vez ela teve o cuidado de não entrar em detalhes sobre o relacionamento. Mas a palavra "abusivo" me chamou a atenção e eu fiquei indignado. Quantos relacionamentos abusivos ela teve, afinal? Como uma mulher inteligente e forte como ela, que estudava e encontrava um jeito de se reerguer mesmo com um filho pequeno nos braços, que se livrou sozinha do vício anos antes, caía nas mãos de alguém que a machucasse? Na verdade isso até hoje me incomoda, tanto quanto a ela mesma.

Por outro lado, era impressionante ler aquelas palavras, como se eu estivesse vendo as linhas de raciocínio que ela desenvolvia se emaranhando num padrão irregular, de pequenos fragmentos que estendiam e acabavam enquanto outros geravam outros vários novos fios. Eram como galhos de árvore que se ramificavam em várias direções saindo de um único tronco.

As Cartas da ProblemáticaOnde histórias criam vida. Descubra agora