6. Ally Sem Rosto

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Acho que por menos que eu pensasse a respeito na época, eu já gostava dela. De alguma maneira. Com o passar do tempo, formei na minha mente uma imagem. Com o mínimo que ela se descrevia, uma mulher não muito magra, de cabelos verdes (ela sempre tingia o cabelo), com tatuagens nos braços e o nariz levemente empinado (ela dizia que eram suas únicas vaidades, o sorriso e o nariz). Não era o suficiente para visualizar com clareza na mente, mas o suficiente para dar algo parecido com um rosto quando lembrava das coisas que lia.

Foi durante esse período em NY, que pelo que me lembro, tomei duas decisões. Uma muito certa, a outra, creio que nem tanto.

Havia uma Con agendada em NY mesmo, e claro que meu amigo e irmão Sean estaria lá para garantir que todos os arranjos fossem feitos. Ele mesmo já se tornava aos poucos um pouco famoso, porque onde quer que eu fosse ele estaria junto. Por algum motivo, lembro que cismei que ela estaria lá. Que ela poderia ter juntado algum dinheiro, deixado o filho com o pai, ou com a mãe dela, talvez até trouxesse ele junto, e fosse na Con me encontrar pessoalmente.

Eu vi aquela fila enorme, e passei cumprimentando a todos que estavam mais próximos, com a atenção de sempre, mas eu olhava ao redor, esperando que talvez visse aquele rosto que imaginava. Todos os braços que se estendiam, eu tentava identificar as tatuagens, mas não vi nenhuma.

Os fãs se aproximavam e tiravam fotos, e eu olhava ao redor. Por mais que tentasse me convencer que era tolice, uma outra parte minha insistia que talvez ela estivesse lá. O Sean percebeu e durante um intervalo, se virou para mim enquanto acendia um cigarro:

- Cara, tá tudo bem com você? - o Sean me perguntou, preocupado. - Você parece que está em outra dimensão ou coisa assim!

- 'Tudo bem, sim....é só que...é idiotice minha, cara...

- Como assim?

- Tem uma fã...ou acho que é uma, não sei ainda o que ela é de fato...

- Ah, pronto...Norman apaixonado de novo? - ele disse rindo. - E a sortuda da vez é uma fã?

- Eu não sei se ela está aqui...

- Daqui a pouco começa a sessão de fotos, se ela estiver aqui, com certeza vai ser lá que você vai encontrar.

- Não sei...eu não acho que esteja. Mas procurei mesmo assim. E não estou apaixonado, pateta. É apenas curiosidade...queria saber qual é a aparência dela, então, se ela estivesse aqui...

- Você não sabe...? Como você não sabe a aparência dela?

- Ela me manda cartas.

- Cartas? Tipo....cartas, cartas mesmo?

- Sim. Esquisito pra cacete, ela escreve cartas, e não são coisa simples. Coisas dela. Do dia dela, da família, dos amigos, histórias....até sobre política ela já escreveu cartas.

- E o que ela fala sobre você?

- Não muito. Só das coisas que temos em comum, bandas, opiniões, gostos em geral...

- Ela é esquisita...

- Acho que sim...mas por algum motivo pensei que ela poderia estar aqui...

- Ela é de NY também?

- Não.

Sean abriu os braços como se fosse um enorme absurdo.

- E como que você acha que ela vai estar aqui? Ela disse?

- Não. Ela não é daqui.

- De onde então, Normy?

- Brasil. Uma cidadezinha perto de São Paulo.

Sean apenas riu de mim. Depois colocou a mão sobre meu ombro enquanto eu tragava meu cigarro.

- Ela é esquisita, e você é maluco! Duvido que ela esteja aqui! Se eu entendi direito: ela não é daqui, não disse em nenhum momento que viria, e você também não faz a menor ideia da aparência dela. É isso mesmo?

- Acho que sim, mas da forma que você colocou pareceu idiotice.

- Idiotice? De jeito nenhum. Mas que é insanidade, é sim! Felizmente para você, eu já estou acostumado com maluquices suas, afinal, quantas vezes parei na estrada para fotografar animais mortos pra você? Então, não me surpreende essa nova obsessão. Mesmo assim, temos trabalho para fazer.

Eu joguei o cigarro no cinzeiro, aliviado por falar sobre isso com alguém. Mesmo que eu nunca tivesse sequer cogitado em fazê-lo.

Lógico que não vi nenhum sinal dela por ali. Não sei o que pensava, achando que ela estaria lá. Tirei fotos e mais fotos com fãs como de costume, e eventualmente voltei a me distrair. Depois tivemos um painel, e foi bem divertido, apesar de que o "fantasma" dela ainda pairava na minha mente.

Voltei para casa, e enquanto pensava e tentava adivinhar quantas cartas teria me esperando no trailer na Geórgia, Sean me ligou, estava por perto e me chamou para tomarmos uma cerveja em um bar ali perto de casa.

- Você já escreveu para ela? - ele perguntou depois de me ouvir por uma boa e longa hora contando tudo que eu li nas cartas dela.

- Eu? O que eu teria para dizer? - perguntei enquanto dava um gole na cerveja.

Sean encolheu os ombros, fazendo um bico torto.

- Sei lá, cara...não precisa responder 10 páginas escritas à mão com outras 10...talvez apenas seja sincero, diga que você tem lido as cartas dela, algo assim.

- "Oi, Ale, obrigado pelas suas cartas, estou lendo e gosto muito delas. Beijos, Norman." Não é meio idiota?

- Ah, sim, é completamente idiota. Esqueceu como conversar com alguém? Manda algo tipo "obrigado pelas cartas, leio sempre que posso, você parece ser uma pessoa interessante. A propósito, como você é? Gostaria de ter um rosto pra imaginar enquanto leio suas cartas." Que tal?

- Muito invasivo. Pergunto o peso dela também?

Ele apontou o gargalo da garrafa para mim.

- Na verdade, isso pode ser uma boa ideia.

Eu ri, mas um pouco sem vontade.

- É ridículo isso. Quem me garante que as coisas que ela me conta sejam 100% verdadeiras? Pode ser tudo invenção dela mesma, até.

- Então, faça uma pesquisa. Não tem o nome dela nas cartas?

- Sim.

- Coloque na internet e veja o que aparece. Pode ser que você se surpreenda, e ela seja mesmo tudo isso que você diz. Mas pode ser também que seja uma fã de 12 anos se passando por outra pessoa.

Por mais que fosse uma boa idéia, não tinha certeza se queria saber a verdade. Não queria acreditar que existia a chance de estar sendo enganado, e que eu perdia meu tempo pensando em contos e lendas que não seriam reais, apenas delírio de alguma menina.

As Cartas da ProblemáticaOnde histórias criam vida. Descubra agora