9. Ally Tem Um Rosto

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O que eu gostava mais do que tudo eram as músicas. Ela costumava sempre colocar o que estava ouvindo enquanto escrevia, e sempre que podia eu escutava, antes ou depois. E ela ouvia de tudo, aparentemente. Peças eruditas, jazz, rockabilly, psychobilly, punk, rock'n roll....tinha de tudo.

A carta seguinte não era uma carta. Eram fotos. Duas fotos. Em uma ela segurava o filhinho no colo, e ambos sorriam. Ela estava com os cabelos soltos, na altura do ombro, negros e ondulados. Vestia um casaco preto e uma calça preta, pareciam estar em algum tipo de jardim. Presumi que fosse o jardim da casa do ex-marido em Osasco. Provavelmente a foto fosse de autoria dele também. A outra foto era apenas ela, vestia uma camisa jeans e estava recostada em uma janela fumando um cigarro, a luz vinha da janela e acentuava o cabelo tingido de verde. Ela tinha razão em ser vaidosa com o sorriso. Apesar do maxilar quebrado, mal se notava onde estava a fratura porque o sorriso dela era bem largo e seus dentes pareciam as teclas brancas de um piano. E tinha mesmo o nariz reto, e apenas a ponta arrebitada, tanto que mal se notava a sutileza daquela curvinha na ponta do nariz.

E quem diria, Sean estava errado. Não era uma menina de doze anos. Era uma mulher, adulta, feita, real. Finalmente ela tinha um rosto. E eu não sabia explicar, como até hoje não sei, mas se não olhasse com a devida atenção, não era bonita nem feia. Era apenas normal.

Por mais razão que ela tivesse em falar do sorriso e do nariz, eu não conseguia deixar de reparar nos olhos dela. Olhos castanhos, amendoados, e cílios densos e longos que poderia muito bem pensar que fosse maquiagem, mas pela foto mesmo eu podia dizer que não era. Eram naturais. Tinha uma pequena covinha na bochecha esquerda quando sorrria e os lábios eram grossos e desenhados. O sorriso fazia parecer que ela tinha no máximo 25 anos, e podia ver apesar da posição que ela estava na foto que tinha os quadris largos e coxas grossas. Para mim, ela parecia perfeita. De repente, eu não queria mais ler as cartas, queria ouvir a voz dela, queria vê-la.

Cheguei a pensar em escrever algo a convidando, mas dificilmente ela aceitaria. Estava começando a retomar a vida depois da maternidade, se refazendo de uma separação e eu não queria ser o cara que a convenceria a parar tudo de novo.

E agora tinham cartas debaixo do travesseiro na minha cama no apartamento em Chinatown, NY também.

As Cartas da ProblemáticaOnde histórias criam vida. Descubra agora