31. Mais uma vez, o Teatro

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Naquele dia à noite, fomos para a casa da mãe dela, e depois voltamos mais uma vez ao teatro. Naquela noite em particular, estávamos no sofá preto no canto, ela estava deitada no meu colo (sim, agora ela ia e deitava no meu colo. Nunca mais no colo do Marco. É infantil, mas me sentia um tanto vitorioso nesse aspecto). Ela tomou uma cerveja enquanto eu havia dividido com o Marco uma dose de whisky.

- Tem um lugar em NY que você iria adorar...

- É mesmo?

- Um bar de blues e jazz, um dos mais antigos da cidade. Praticamente um berço da maioria dos artistas que você gosta.

- Seria legal conhecer lá mesmo...

- Um dia você podia ir pra lá, me visitar...

- Um dia...

Ela respondeu sem desviar a atenção da conversa entre alguns dos atores que estavam na mesa. Estavam conversando sobre literatura, e Ally ouvia com atenção.

Um amigo dela, chamado Rogério sentou-se na poltrona ao lado do sofá. Como sempre, ela se levantou e o cumprimentou com um abraço longo. "Esse pessoal se abraça demais", pensei divertido. Não costumamos no meu país se abraçar nem ter tanta intimidade. Um aperto de mão costuma bastar, e eu nunca deixei de me surpreender em como ela e as pessoas ao redor se cumprimentavam com beijos, abraços longos. Mesmo que tivessem se encontrado no dia anterior. É esquisito, mas ainda assim, acho legal.

- finalmente assisti o filme que você me indicou. - Disse o Rogério,

- Qual deles?

- A Fonte da Donzela.

- Gostou?

- Gostei sim, mas é pesado né...

- Eu não indicaria se não fosse.

- É a sua cara mesmo. Mas não sabia que você se interessava por crenças, catolicismo essas coisas do filme.

- Pela fé em si, não dou a mínima. Mas acho interessante o comportamento. No filme então, o Bergman usa muito a Idade Média, em outros são famílias paroquiais, padres sendo questionados, e coisas assim. Eu gosto dessa análise dele do comportamento humano quando é orientado pela fé. Ele critica muito isso, e não tem forma melhor de criticar em um filme do que usar a figura das autoridades do assunto.

- Mas no a Fonte da Donzela, a família é muito religiosa, mas a Donzela mesmo, qual o nome dela?

- Anna

- Sim, ela não é exatamente religiosa.

- Não. É uma donzela mesmo. Ela é jovem demais para se importar com isso, a mãe dela mortifica a própria carne pela fé. O pai é um pouco menos fervoroso, mas ainda assim, reza.

- E ela, nada...

- Ela acredita nas pessoas. é jovem. Acontece. Aí acontece aquilo tudo né...

- E aí toda a família dela acaba se perdendo na própria fé. Dando abrigo aos assassinos.

- Sim. É legal de ver isso. A reação emocional supera a razão. E o amor a deus, nessa visão do Bergman....ele prova ali naquela hipótese, todo filme é uma. E ele mostra ali que a fé é sim, racional, é deliberada. Abre-se mão dela em prol da emoção. Todos enlouquecem com a morte da Anna.

- Isso é muito triste.

- Você ficou triste?

- Fiquei. Mesmo com aquela fonte onde estava o corpo dela, não achei aquilo bonito. Os pais recuperam a fé, mas....não é bonito.

- Não...eu lembro que a primeira vez que vi, que quando o pai pega o corpo dela, e a água começa a brotar do chão, imaginei como se aquilo fosse o sangue dela derramado para sempre ali.

- Faz sentido....é uma boa interpretação.

Eu só lembro dessa parte da conversa porque me chamou a atenção, e porque ela estava deitada no meu colo, então estava conseguindo ouvir tudo. Claro que a medida que foi chegando mais e mais gente, ela se levantou e conversaram animadamente durante algum tempo. 

As Cartas da ProblemáticaOnde histórias criam vida. Descubra agora