27° Capítulo - Confissões

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Me vesti ainda sorrindo, o vendo balançar a cabeça em negação, ultrajado pela loucura que acabamos de fazer, principalmente quando um funcionário do local chegou em seguida, estacionando a moto próximo a nós, pronto para assumir o plantão de vigilante, foi por pouco. Íamos em direção a pousada, e eu gargalhava sem parar da tensão que ele ainda estava, segurava firme nos volantes, com os lábios semicerrados.

Anahí – Eu deveria tirar uma foto da cara que você fez quando o vigia chegou. – Ria gostosamente.

Alfonso – Não tem graça Anahí, ele poderia ter nos visto, você estava nua... não tem vergonha na cara? – Questionou ultrajado.

Anahí – Nem um pingo, sou até exibida confesso. – Prendi o riso nos lábios o provocando. – Ué, ele poderia até participar da brincadeira, não era de todo mal.

Alfonso – QUE? – Virou em minha direção, me fuzilando com o olhar.

Anahí – Brincadeirinha.  - Ergui as mãos em defesa. – Vem dizer que não foi bom? – Instiguei tocando a coxa dele maliciosamente.

Alfonso – Tira essa mão daqui, ainda não me convenceu, sobre isso... de três. – Respondeu contrariado.

Anahí – Você acha que eu posso pensar em outro, com um guarda costas tão bicudinho desse? – Perguntei apertando o bico que se formara na boca dele. – Lindo, gostoso e cheiroso. – Pontuei aproximando do ouvido dele, falando baixinho. – Hum?

Alfonso – Você é um perigo criatura. – Sorriu derrotado.

Quando chegamos a pousada, Alfonso foi até a administração se informar sobre os passeios do dia seguinte, e onde encontraríamos um guia turístico de confiança, para fazer um percurso maior. Eu subi direto para o quarto, precisava de um banho.

Fiquei longos minutos deixando a agua morna cair em meu corpo, quando terminei me vesti apenas com um roupão, e enrolei os cabelos em uma toalha. Estava terminando de escovar os dentes quando ouvi um barulho vindo do quarto, gelei de início, mesmo que não transparecesse eu permanecia assustada com os últimos acontecimentos.

Caminhei em passos lentos até lá, e avistei uma camareira, ainda de costas, trocando as roupas de cama, para depois borrifar sobre os lençóis um aromatizante com cheirinho de talco perfumado.

Anahí – Você me assustou. – Disse caminhando até lá, respirando aliviada.

Óh, me desculpe... eu bati na porta e a senhorita não respondeu, pensei que não tinha ninguém. – Disse a senhora, girando o corpo e parando em minha frente.

Quando ela me fitou colocou a mão sobre o peito em um sobressalto. A respiração ficou pesada e empalideceu na hora, como se tivesse visto um fantasma.

Anahí – Senhora, o que houve? Você está bem? – Perguntei assustada indo em sua direção. Ela não me respondeu, só me olhava um tanto desacreditada. – Sente aqui, vou pegar uma água pra você. – A ajudei sentar sob a poltrona e corri até o frigobar para pegar uma garrafinha d’água, a servindo logo em seguida.

Vi as mãos tremulas segurarem a garrafa, um pingo de suor escorreu na testa dela, imaginei que deveria ser pressão baixa. A toquei no rosto e notei que estava gelada.

Anahí – O que está sentindo?

Eu... eu... – Gaguejou desconexa.

Ergui o rosto dela, a segurando pelo maxilar. Foi quando vi aqueles olhos azuis, apagados em um tom de cinza, dilatados, tamanho o choque. Dei dois passos para trás, e balancei a cabeça querendo afastar aquele pensamento que me tomara. Meu coração começou a palpitar no peito, como se quisesse sair dali, ofeguei nervosa, quando a vi se levantar e caminhar em minha direção.

Anahí – Como.... Qual o seu nome? – Perguntei, com medo da resposta.

Meryl. – Respondeu entre ofegos.

Anahí – Como? O que você faz aqui? Quem deixou você entrar? Que brincadeira é essa?– Senti minha cabeça embaralhar, continuava andando para trás até me chocar contra a parede. Era ela, a minha mãe, parada em minha frente, como uma desconhecida, uma estranha.

Meryl – Anahí eu, eu não sabia... eu trabalho aqui. – Respondeu com a voz falhada, desorientada.

Anahí – Você sabe quem eu sou? Como sabe o meu nome? Você não me conhece. – Bradei enfurecida. – Sai do meu quarto agora, você é uma estranha, e eu não falo com estranhos.

Meryl – Essa frase é da Ângela. – Murmurou franzindo o cenho. – Anahí, calma... eu não estou aqui de propósito, foi uma coincidência.

Anahí – Oh sim, porque você não se daria o trabalho de procurar a própria filha, foi uma infeliz coincidência. – Cuspi magoada.

Meryl – Filha, eu nunca quis ficar longe, eu não tive escolha, eu precisei abrir mão de você. – Andou até mim tentando pegar minhas mãos, os olhos dela marejaram e eu buscava um sentido naquilo tudo. Puxei com força quando senti a pele dela tocar na minha, enojada.

Anahí – Não se dê o trabalho de inventar meias desculpas, é só sair e fingir que eu não existo, como fez a vida inteira, e com maestria. – Ironizei expelindo raiva. – Eu não vou atrás de você.

Meryl – Você não sabe o que eu passei a Anahí, foi a decisão mais difícil da minha vida, mas foi um ato de amor, e eu me orgulho disso.

Anahí – Um ato de amor? Pra quem, pra si própria? Abandonar a filha foi um favor pessoal?

Amar pode doer

Amar pode doer as vezes

Meryl – Para minha irmã. Eu fiz isso por ela. – Justificou, as lágrimas grossas brotaram sobre os olhos cintilados, aquilo amargou minha garganta.

Anahí – Você deveria agradecer ela, por ter sido tudo que você não foi, e não culpá-la.

Meryl – Eu não a culpo, eu fiz o que tinha que ser feito. Você conheceu a Ângela feliz Anahí, eu a destruída.

Anahí – O que você está dizendo? – Passei a mão na esta contendo o suor que escorria, o nervoso era palpável.

Meryl – Ângela estava grávida, era uma menina, engravidamos ao mesmo tempo, com uma diferença, ela era casada e eu uma mulher solteira. Eles estavam vindo ao Texas passar o Natal comigo quando aconteceu. E sofreram um terrível acidente de carro, chovia muito e Arthur perdeu o controle, derraparam na pista e capotaram várias vezes. Ela estava com sete meses, já tinha tudo pronto a espera da Melina, eles estavam felizes.  – Falou em um choro engasgado. – E a vida brincou com ela, tirou o marido e a filha de uma só vez. Você viu ela sorrindo ao mundo, e eu vi ela querendo morrer, afundada em uma depressão monstruosa, tomando remédios para não acordar, para não ter que sentir dor. Como ela iria voltar para casa sozinha? Ver o quarto pronto para alguém que não iria mais chegar? Eu me senti terrivelmente culpada, se não tivesse insistido tanto, tudo seria diferente.

Anahí – Onde você quer chegar? – Instiguei.

Meryl – Eu tirei a filha deles Anahí, indiretamente mas tirei. Então a única forma de devolver foi entregando você pra ela. Foi a decisão mais difícil que tomei na vida, me rasguei em pedaços, mas eu não aguentava conviver com aquela culpa, a única coisa que pedi foi que você soubesse que tinha uma mãe, mesmo que fosse somente para odiá-la, e que você tivesse o nome que eu escolhi. A sua tia tentou nos aproximar, mas eu percebi que a minha presença te fazia mal, você não aceitava meus presentes, nem a minha companhia. Eu não queria te fazer mal minha filha.

Anahí – Você está querendo dizer que... que... – Iniciei a frase mas engasguei entre lágrimas. Algumas lembranças tomaram minha mente em um relance, os brinquedos jogados dentro de uma caixa para doação, ainda intactos, as cartas que me enviava e eu picotava com tesoura. As ligações que eu fingia estar dormindo para não atender. Encostei minha cabeça na parede e comecei a tremer violentamente.

Meryl – Eu nunca esqueci de você. Eu sempre te acompanhei filha, eu sei que sua primeira palavra foi lua, que com cinco anos você caiu de bicicleta e quebrou o dente da frente e fez birra para não ir para a escola, com vergonha. Eu sei tudo o que me foi permitido saber, o dia que você menstruou pela primeira vez no colégio e fez um escândalo achando que ia morrer. – Dizia secando as lágrimas insistentes, enquanto me encarava buscando um olhar de aceitação. – Também sei que o seu primeiro beijo foi com o Jensen, e você disse a sua tia que tinha gosto de nescau. Eu não estava presente fisicamente, mais estava com você o tempo inteiro. – Tocou minhas mãos travadas, e ergueu a mão livre até meu rosto secando uma lágrima que escorria livre em minha bochecha.

Amar pode curar

Amar pode remendar sua alma

Anahí – Porque nunca me disse isso antes? Porque deixou eu amargar uma rejeição a vida inteira? Carregar um sentimento ruim, acreditar que não era amada? PORQUE? – Gritei a plenos pulmões empurrando as mãos dela.

Meryl – Eu não sou perfeita Anahí, nunca vou ser. Você construiu a sua vida, é amada por milhares de pessoas. Eu não queria que você ficasse dividida entre os seus sonhos e eu. Olhe só pra mim, o que eu tenho de bom para oferecer?

Anahí – Eu só queria o seu amor, só queria ver seu rosto na plateia da apresentação do dia das mães, que fosse você a cuidar dos meus machucados. Eu queria uma mãe.

E se você me machucar
Mas está tudo bem, querida
Apenas as palavras sangram
Dentro destas páginas, apenas me abrace
E eu nunca te deixarei ir

Meryl – Eu te dei a melhor mãe que poderia existir, eu não seria tão boa quanto. Tenho certeza disso toda vez que te vejo na TV, e olhando pra você agora, eu tenho mais certeza ainda. Ela te deu um futuro que eu não conseguiria oferecer. Isso é amar minha filha. Ceder, abrir mão, mesmo que te deixe destruída, mas tendo a certeza que no final vai valer a pena. – Disse antes de me puxar pela mão e me enlaçar entre seus braços, depositando vários beijos em minha cabeça. – Eu te amo filha, eu sempre te amei, me perdoa, me perdoa se amei errado.

Desabei em um pranto copioso, aquelas palavras me acertaram impetuosamente. Meu corpo pesou em um fraquejo e me deixei ser sustentada por ela. Se tudo aquilo era verdade, foi a maior prova de amor que já ouvira falar na vida, um amor fraternal, divino, guiado pelos laços de sangue.

Naquele momento eu entendi porque Tia Ângela falava dela com tanto carinho, a voz mudava toda vez que pronunciava aquele nome, uma gratidão até então desconhecida por mim, mas que respondia todas as perguntas que eu fazia, e ela se limitava a sorrir dizendo que um dia eu iria entender porque as duas se amavam tanto.

O mundo se abriu embaixo dos meus pés, e sugava toda as memórias de uma vida. Aquela estranha que me chamava de filha, me apertava em um abraço sufocante, desesperado. Tentava em vão secar todas as lágrimas que molhavam o meu rosto. Eu senti uma mistura de raiva, mágoa, saudade e pertencimento, como se aquele colo fosse o meu abrigo, mas ao mesmo tempo um calabouço. Tentei me desvencilhar dos braços dela, angustiada, aquilo era pesado demais para digerir tão depressa, foram anos amargando o sabor da rejeição.

Suspirei aliviada quando ouvi a voz de Alfonso ecoar no quarto, tirei as mãos dela de cima de mim e fui em sua direção, me colocando atrás dele, acuada. Sentia meus olhos arderem toda vez que eu a encarava, ali tão próxima.

Alfonso – Ei, calma... eu estou aqui com você. – Disse me aconchegando entre os braços, visivelmente assustado com meu estado.

Anahí – Manda ela sair, eu quero ficar sozinha, eu estou sem ar. – Pedi em suplica, o encarando com os olhos encharcados. Alfonso assentiu com a cabeça e caminhou até a porta.

Alfonso – É melhor você ir agora, vocês vão ter tempo para conversar depois...ela precisa de um tempo. – Disse cauteloso, enquanto desviava o olhar até Meryl.

Meryl – Tudo bem, eu vou, mas por favor me perdoe, mais uma vez. – Respondeu ainda chorosa, me olhando no canto antes de sair pela porta.

Alfonso – Olha pra mim, nós não vamos falar sobre isso agora. – Disse me segurando pelo rosto. – Nós vamos deitar naquela cama, e eu vou acariciar seus cabelos até você dormir, tudo bem? São revelações de mais para um só dia, e eu vou cuidar para que fique bem, confia em mim. – Beijou minha testa demoradamente. – Só preciso de um banho antes disso.

Anahí – Como você sabe... que ela...

Alfonso – Seus olhos, são dela. – Lembrou.

Assenti um tanto confusa, mas sem forças para discutir aquilo. Depois do banho ele fez como prometera, me aninhou em seus braços e acariciou meus cabelos para que eu adormecesse, em vão. Não trocamos mais nenhuma palavra, estava anestesiada, passei a noite fitando o teto, desnorteada, vez o outra ele deslizava a mão na lateral do meu rosto, para mostrar que ficara acordado comigo. Compartilhamos o silêncio, mas foi suficiente saber que ele estava ali, sempre.

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