A Lua de sangue

1.9K 102 19
                                    

Que vida para terminar assim, pensei.

Bom, eu nem estava terminando e estava aqui também.

Apesar de que é como se fosse o fim.
Estava acabado, talvez até já estivesse feito. Perdi a noção dos dias, mas era isso mesmo que eu queria, esquecer.
E esqueci.
Ou achava que queria, e com certeza a essa altura tenho que admitir, que nem esquecer tão pouco.

Engoli seco a raiva pelo pensamento de que ela poderia estar naquele exato momento dura, gelada, em cima de algum corpo sugando vorazmente até última gota de sangue de algum pobre coitado. Uma recém nascida não era facilmente controlada, certamente alguma vila em algum lugar vai sofrer várias baixas.
A viagem de lua de mel era uma excelente desculpa agora.

- E então garoto? Conte-me o porquê você está aqui?

Era tão perturbador pensar nisso que esqueci onde estava. - Cuida da sua vida, já disse.

- Eita garoto, se acalme, perguntar não ofende! Além do mais, se eu vou ter que aguentar esse seu fedor para poder dormir, mereço ao menos saber o por quê disso.

Isso me fez rir em pensamento, então comecei a falar.

- A vida me trouxe aqui. Eu não sou do bem. Eu costumava ser, um bom garoto, mas eu não sou mais. Mas isso não tem importância. Agora já é tarde de mais.

- Traficante filho? Isso aqui não pode, se elas descobrirem vão pôr você para fora, e talvez até a mim. Vou pedir outro quarto.

- Calma vovô! Não trafico nada não. Meu mal é outro.

- A máfia não está atrás de você não né? Porque não tô afim de acordar morto.

- Não estão atrás de mim vovô, eu que me afastei. Da minha vida, da minha família, da mulher que eu amo. Pode ficar tranquilo, ninguém vai te matar hoje, não por minha causa.

- Ah, o problema é mulher, devia ter imaginado. Nada mais terrível para acabar com a vida de um homem do que um coração partido. Essas vadias são assim mesmo filho, elas se cansam e vão embora.

- Ela não é uma vadia, olha como fala!

- Calma, não quis ofender. Mas me diga, o que foi então que essa princesa fez com você que te trouxe até aqui?

- Ela não me escolheu. Ela escolheu morrer.

- Ela se suicidou?

- Você não é tão inteligente não é vovô? Ela escolheu outro cara, um cara que não pode dar a ela o que eu já dei quando ele a deixou. Eu estava lá, sempre ali para ela. Quantas oportunidades eu perdi em nome da segurança dela. - Novamente engoli em seco.

- Eita meu filho, mas se ele a deixou uma vez, vai deixar de novo. Os caras maus fazem assim, os que não sabem apreciar uma boa mulher. Se eu posso dar minha opinião...

- Não pode! - O interrompi.

- Bom, mas vou dar mesmo assim. Aqui não é seu lugar filho, se ele a deixou uma vez, vai deixar de novo, e você deveria estar lá para ela, e mostrar quem é que realmente se importa.

Encarei por um instante aquele velho acabado falando sobre ela. Eu me importava, realmente me importava.

- Eu já estive lá. Já a fiz admitir seus sentimentos, e até a fiz pedir para que eu a beijasse. Eu quase a ganhei. Mas ele sempre fica no caminho, sempre aparece na hora errada.
Ela não me escolheu, ela escolheu ele. Sempre vai ser ele. - Agarrei o lençol nesse momento com tanta força que ouvi ele rasgar um pouco em alguma parte. Ainda me doía muito pois eu sabia que era questão de tempo e ela teria sido minha para sempre.

- Como assim a fez pedir que a beijasse, vocês nunca ficaram juntos?

- É complicado.

- E você já está desistindo?

Me calei. Ele não ia entender. Mas claro, continuou falando.

- Olha garoto, eu não sei de que máfia você é ou que negócio do mal você faz, mas essa sua história me parece um amor jovem, que você nem viveu ainda. Sua vida ainda está apenas começando, e se você sabe que ela tem algum sentimento por você, ainda que esteja com o outro, você ainda pode conquistá-la. Em algum momento ele vai abandonar ela novamente ou fazer coisa pior. - Seguiu um longo instante hesitante. - Quão malvado você é garoto? Porque vou te dizer, eu sou do Texas, e lá a gente resolve as coisas na bala.

Aquilo me fez rir. Se ele soubesse que eu não preciso de armas para acabar com aquele sangue suga, com certeza iria mudar de quarto.

- Mas eu não venho do Texas e se eu acabasse com ele, e eu poderia, isso traria alguns sérios problemas para o meu pessoal.

- Bom, então não é o seu fim, quem ama realmente não desiste. Você se quer chegou a lutar por ela, só a apoiou, o que qualquer um no seu lugar faria, se quer saber. - Ele deitou na cama de baixo de uma beliche e se ajeitou, puxando uma perna com a mão para dentro da cama - Não me admira estar nessa situação de segundo lugar. Quem não se impõe é obrigado a aceitar o que o destino trás.

- Então você não se impôs e aceitou seu destino? Porque está aqui junto comigo!

- Eu já sou velho, e você não vai querer saber a minha história, que é realmente uma história triste, não apenas um drama onde eu me acovardei.

- Bom, eu já lhe contei sobre mim, agora é sua vez, ou será que é covarde de mais para falar no assunto? - Eu o provoquei.

- Eu tinha família, uma família linda, não muito grande, mas linda e amorosa. Eu cuidava de uma fazenda grande e comandava e acompanhava as transações do gado e por isso eu viajava sempre que algum gado era vendido ou tinha que buscar algum bicho novo. Claro que nessas viagens longas eu conheci um mercado negro de oportunidades, cabeças de gado sempre se perdiam na viagem, de sede, de algum acidente, doença...você sabe.
Então era lucrativo para mim. Até que o negócio ficou grande de mais.
Um comprador queria mais cabeças por viagem, e quando eu disse não, ele ameaçou a minha família. E eu não podia deixar deixar isso assim, lá a gente não mexe com a família dos outros. Eu fiz uma emboscada e o matei. Foi rápido e limpo. Terminei a viagem e voltei para casa.
Quando cheguei, a minha família inteira estava morta. Os desgraçados deixaram um recado, aquele com quem eu negociava era só um peão como eu, o chefe havia descoberto a sua morte e veio se vingar. Como eu não estava em casa, ele matou quem estava. E isso sim garoto, é uma desgraça de fim. Se eu estivesse lá minha família teria sobrevivido, eu teria dado a minha vida por eles. Mas eu não pude escolher.

- E você nunca foi atrás deles para vingar suas mortes?

- Eu teria ido se isso trouxesse eles de volta. Agora só vou passar meus dias aqui, indo onde a vida me levar, graças a Deus ninguém vive para sempre e espero em breve acabar com essa vida miserável.

Pobre coitado, a mortalidade é realmente uma benção. Por que ela não vê isso?

- E para terminar garoto, se você pode escolher dar a sua vida por alguém que você acha que vale a pena, então dê, se arrepender de lutar nem se compara a se arrepender de não lutar.

Aquelas palavras eram fortes, e mexeram comigo.
Será que ele estava correto, que desisti cedo de mais?
Tudo o que fiz por Bella, para que ela me escolhesse, será que algo ainda poderia fazê-la enxergar que a morte eterna não é vida?

Lua de açúcarOnde histórias criam vida. Descubra agora