"Despida de Mim"

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São dez da manhã e acabo de chegar

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São dez da manhã e acabo de chegar. Antes de ir para o trabalho venho sempre ver a Lili. É a minha irmã mais velha. Aos quarenta e poucos anos, a vida decidiu pô-la à prova transformando a sua alma em algo oco e vazio. Roubando-lhe memórias e recordações.

Tudo começou, há um ano. A Lili começou a esquecer-se espontaneamente das coisas: umas vezes das chaves de casa, outras vezes das chaves do carro e noutras vezes ainda, a carteira dos documentos. Depois foram nomes de pessoas e até as tarefas do dia-a-dia que ela fazia mecânica e rotinamente. Era raro ela esquecer-se do que quer que fosse, mesmo a mais pequena e mínima coisa. Até ela começar a arrumar objetos nos sítios mais improváveis como se de repente ela tivesse desaprendido e esquecido o verdadeiro sentido de organização.

Na verdade, no imediato, não quisemos dar demasiada importância à situação, colocando as responsabilidades em cima do elevado volume de trabalho que ela ia tendo e que aumentava de dia para dia. Eu até costumava gozar com ela, dizendo-lhe constantemente, que muito provavelmente, todos aqueles esquecimentos, que ela tinha vindo a ter, poderiam advir do seu fetiche por todo o tipo de queijos. E o ditado diz que: quem come muito queijo, depressa e facilmente se esquece do mais forte desejo. Não imaginando a gravidade da situação. No entanto, as perdas de memória da minha irmã foram acentuando-se cada vez mais e eu decidi convencê-la a ir ao médico. Não foi nada fácil porque a Lili detestava ir a médicos, mas com paciência e muita persistência, consegui.

Já não achava nada normais aquelas consecutivas e avultadas perdas de memória e os abruptos esquecimentos. Senti que a Lili já não era a mesma pessoa.

O Marco: namorado de sempre da minha irmã, também reparou no sentido de mudança e também já começava a andar preocupado e a estranhar as mudanças de atitude da Lili.

E num dia chuvoso e cinzento, a adivinhar a mais penosa das notícias, chegou o diagnóstico mais inesperado: a minha irmã tinha doença de alzheimer.

Aos quarenta anos e na flor da idade, poderia dar-me ao luxo de pensar assim, como é que era possível? Não conseguia acreditar que a minha Lili de sempre estivesse a sofrer daquela doença tão mentalmente incapacitante. Não era justo nem fazia qualquer sentido, ninguém merece perder progressivamente pedaços da sua existência. Muito menos ela.

Só soube de tudo, quase dois dias depois, a Lili não contou nada a ninguém e decidiu guardar tudo só para si. Como é que se aguenta um fardo destes na solidão?

Estranhando silêncios e olhares pesados, carregados e demonstrativos da revolta que ela sentia. Decidi convidar a minha irmã para um passeio. E foi durante esse passeio que ela decidiu abrir-se, desabafar e contar–me tudo. Nunca me senti tão chocada, desiludida e zangada com o mundo. Com a vida. Porquê ela? Pode o nosso próprio corpo e o nosso cérebro: motor de todos os nossos pensamentos, de todas as nossas emoções, memórias e recordações aprisionar-nos assim dentro nós próprios? Que direitos são os nossos, afinal?

O mundo caiu-me aos pés e caiu também aos pés do Marco que ficou destroçado ao saber que dali a pouco tempo iria perder literalmente a mulher que mais amava. Juramos e prometemos ficarmos sempre juntos e ao lado dela e mantermo-nos sempre unidos. E cumprimos sempre incondicionalmente o prometido até aos dias de hoje.

Entretanto passaram seis meses, a Lili batalhou todos os dias, e a todas as horas cheia de garra e de força para que a sua memória não a atraiçoasse de forma tão galopante, mas esse processo foi só uma forma de ir adiando o inevitável. De tentar contornar o destino das coisas. Vejo na minha irmã, a guerreira que eu gostava de ter sido. Olho para ela – hoje – como a pessoa mais inspiradora que conheci e que – felizmente – ainda faz parte da minha vida. A coragem, a vontade de viver e de não desistir, a resiliência e a energia positiva avassaladoras que sempre emanaram dela fizeram a diferença e foram contra todas as expectativas e estatísticas. Mantiveram-na viva, presente e consciente mais tempo.

Neste intervalo de tempo a minha irmã e esposa: dedicada, amada, forte e feita de vida e de sonhos foi, naturalmente, apagando-se como uma fina luz, como se uma borracha se acercasse dela e fosse esfumando fragmentos essenciais. Mentalizei-me à força, sem crer e sem vontade, continuando a ter imensas dificuldades em aceitar a realidade e tive plena consciência do quão tinha perdido a minha Lili. Senti mesmo que aos poucos ela ia morrendo para tudo.

Quando menos esperávamos, ela começou a perder cada vez mais faculdades, estava a esmorecer a uma velocidade incrível. De um dia para o outro, deixou de saber quem era, aonde estava, o que fazia, a vida que tinha. Deixou – automaticamente – de conhecer-me e de reconhecer o homem que tinha incondicionalmente ao seu lado. A minha Lili deixou de estar presente para nós e para o mundo.

Para ela, não existia nada à sua volta, parecia que tudo tinha parado no tempo. O mundo era oco para ela. À medida que, o seu estado de saúde e de alma se foi agravando, eu e o Marco decidimos levá-la para um sítio aonde ela tivesse todos os cuidados necessários e acima de tudo permanentes. Não aceito nem concordo que me digam que tanto eu como o Marco tenhamos decidido abandonar a Lili.

Isto, nunca, jamais, será um abandono, uma vez que, a visitamos todos os dias. Apenas quisemos dar-lhe uma melhor qualidade de vida, oferecendo-lhe aquilo que nós próprios não conseguimos dar-lhe em casa.

O Marco, nestes últimos tempos, tem aproveitado para desabafar comigo. Continua a confidenciar-me que não consegue aceitar a situação em que a minha irmã se encontra. O facto de a ter perdido para sempre, por vezes, mostra um estado de espírito irracional, fazendo por acreditar que tudo isto não passa de um simples pesadelo. A verdade é que, lá no fundo, eu compreendo-o, porque às vezes também dou por mim a achar que um dia destes vou chegar aqui e a minha Lili vai olhar-me nos olhos e lembrar-se de tudo, mas mesmo tudo, aquilo que de que – neste preciso e exato, momento não se lembra.

Eu sei que não passa de uma utopia minha e de um sonho que adorava que se realizasse. A situação da Lili é irreversível e vamos ter que aceitar isso por muito que nos custe e ao Marco tem-lhe custado penosamente todos os dias. Já me disse que jamais refará a sua vida ao lado de outra pessoa. Disse-lhe que a Lili gostaria que ele seguisse em frente, mas ele diz que não consegue que é demasiado cedo. Remete-se ao silêncio e chora as suas lágrimas.

Entro no quarto da Lili e vejo-a sentada no sítio de sempre: à janela de olhos postos no jardim. Ela sempre adorou a natureza. Todos os dias de manhã, a sentam à janela para poder ter um olhar especial sobre o mundo. Sei que para ela, esta sua curta passagem pelo mundo já não significa nada, porque ela não reage e não vê: pelo menos da mesma maneira que nos observamos as coisas. A Lili transformou-se num simples objeto inanimado e isso dói-me sempre que a visito. Recordar o que ela é hoje, e o que ela era e foi. Aproximo-me dela, abraço-a e acaricio sempre o seu rosto e os seus cabelos. Dou-lhe um beijo. Mas hoje, particularmente hoje, senti algo diferente: senti que ainda sou uma réstia de uma memória viva dentro dela. A expressividade do seu olhar foi especial, intensa, leve e suave, por breves instantes, pude voltar a imaginar o sorriso da minha Lili.

Na verdade, hoje, tal como em todos os outros dias, não a vi sorrir com os lábios; mas, senti o seu sorriso pelo olhar e no mais profundo do seu ser e da sua alma. Senti a essência da felicidade, apenas e só por estarmos ali, juntas.

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