Acordei. Numa manhã chuvosa, desengonçada, agreste e triste como as dos últimos dias, talvez até o tempo adivinhasse a reviravolta que a minha vida ia dar. Mal olhei lá para fora, para as ruas despidas de vida, de sol e de encanto, negras como o meu olhar, a força com que a chuva caía e batia na janela fez-me logo recordar a discussão que tinha tido na noite anterior com o Zé Maria. Daquelas discussões que já não tínhamos desde os tempos de namoro, onde não ficou nada por dizer, dissemos tudo e não dissemos nada. O que sentíamos um pelo outro perdeu-se no meio de tanta culpa, de tantas palavras frias e vazias e de tanto fracasso naquilo que tanto nos unia. E a magia que acabou por se desvanecer do nosso conto de fadas.
Sento-me à mesa, penso e choro enquanto encho a chávena de café e faço duas torradas com manteiga; o salgado das lágrimas borrata a maquilhagem acabada de colocar que disfarça as olheiras profundas e a pele baça e sem graça. Agora sem o Zé Maria não consigo sentir-me bonita, antigamente, arranjava-me porque me sentia bonita, atraente, sedutora, e o Zé Maria reparava nisso e elogiava-me a toda a hora. Agora só o faço por obrigação, porque tenho que ir trabalhar e sou forçada a estar apresentável para poder liderar a empresa, de resto sinto-me um verdadeiro patinho feio no corpo de um cisne.
Pego no tablet e despacho o correio, a empresa não pode parar no meio do caos que é a minha vida. Hoje tenho um dia preenchido, sorrio, pelo menos não penso no Zé Maria.
Há dois dias que ele não dá notícias, mal tenho dormido com a angústia e o desespero que sinto por não saber aonde é que ele está e pior ainda do que isso, com quem está. Saiu de casa a meio da noite – sem dizer nada –, levou duas malas com roupa e mais algumas coisas e assim lhe perdi o rasto.Sempre ouvi dizer aos meus pais que ao longo da nossa vida vai haver sempre pessoas a quem temos a plena noção de que vamos ficar ligados para sempre, eu sentia isso pelo Zé Maria. O nosso amor foi amor à primeira vista, ainda em plena adolescência, apaixonei-me pelo seu jeito de ser, pelo seu sorriso, pela forma como ele se dava e dedicava às pessoas. Pelas inúmeras vezes que me fazia sorrir, pelas conversas que tínhamos, por tudo o que partilhávamos, por isso, não demorou muito tempo até ele me pedir em namoro. Foram os dias mais felizes da minha vida, o Zé Maria era tão diferente: atencioso, preocupado, dedicado, aventureiro; viajamos imenso juntos, jantávamos fora, íamos ao cinema. Era a alma gémea perfeita, o Zé Maria era um homem imprevisível que gostava de me surpreender e de me mimar com pequenos detalhes quando eu menos esperava, o que me deixava sempre embevecida e ainda mais apaixonada por ele.
Eu sabia que no dia em que alguma coisa menos boa nos acontecesse, eu continuaria ligada a ele para sempre, ele iria marcar-me para toda a vida, cada fragmento dele iria ficar comigo para sempre. O que de facto aconteceu, ainda sinto o aroma do perfume dele pela casa e em mim, a suavidade e doçura do seu corpo e das suas mãos no meu, o tom de voz, aquele olhar intenso sobre mim. E isso não se esquece nunca, fica para sempre.
Nos últimos dias, o Zé Maria mudou a sua maneira de ser e estar, sentia-o mais afastado de mim, mais ausente, já não me tocava nem me olhava da mesma maneira, já não me elogiava, já não trocávamos gestos de amor e carinho, mal jantávamos juntos e as conversas que tínhamos reduziam-se ao mínimo. Andava sempre maldisposto, cansado, aborrecido, se eu lhe perguntava se se passava alguma coisa, ele fazia de tudo para me evitar. O que me deixava triste e desagradada, desiludida, sabia que o trabalho na empresa me absorvia o tempo todo, e que já não lhe dedicava o tempo e a atenção que ele tanto merecia, no entanto, esperava – da parte dele – um pouco mais de compreensão e paciência. Não imaginava que ele me fosse fazer isto, que me abandonasse assim e que fizesse por esquecer tudo aquilo que construímos juntos.
Segui com a minha vida para a frente, mesmo sentindo uma dor aterrorizadora no coração, comecei a sair mais com os meus colegas de trabalho, a aproximar-me do Luís – que desde que passei a chefiar a empresa sempre me tentou cortejar, mas eu era fiel ao Zé Maria e recusei sempre os seus ataques de sedução; agora arrependo-me, devia ter aproveitado mais a vida e não ter dado tanto de mim ao Zé Maria. Afinal de contas, eu para ele não tive valor nenhum, a nossa relação por muito cúmplice e forte que tenha sido, não significou nada –, começamos a tomar café juntos depois do trabalho. Algum tempo depois começamos a jantar um em casa do outro, a sair à noite, até surgir aquela atração física e emocional típica. Envolvemo-nos e reaprendi o que é sentir felicidade plena, o que é ser feliz.
Acordei. Numa manhã solarenga, vesti o meu vestido vermelho, por cima do joelho, maquilhei-me, calcei os sapatos beges de salto alto, penteei-me e fui para a sala. Sentei-me à mesa, onde me esperava um ramo de rosas vermelhas e um cartão. Peguei no ramo, cheirei as flores e deixei-me envolver pelo seu aroma apaixonado, fui colocá-las numa jarra na cozinha. Regressei à sala e à mesa, peguei no envelope e li o bilhete, entretanto ele chega, sorri e beija-me nos lábios, tomamos o pequeno-almoço juntos e depois saímos para o trabalho. Não dá para expressar melhor o que sinto...
Passaram quatro meses, um dia o Zé Maria ligou-me – já eu tinha praticamente refeito a minha vida –, não estava mesmo nada à espera da sua chamada. De voz embargada disse-me que tinha plena consciência que tinha cometido o maior erro da sua vida, que sabia que tinha acabado por perder-me. Explicou-me que tinha sentido necessidade de se afastar para pensar e tomar decisões, para fazer uma vida diferente, para recarregar as energias; percebi que a minha vida profissional sempre preenchida tinha feito com que ele se cansasse da nossa relação, de eu não ter tempo nem espaço para ele e para nós. No entanto, disse-me também que este tempo em que esteve longe de mim lhe tinha custado imenso, que tinha sentido imensas saudades minhas e que tinha percebido que por mais que tentasse afastar-se de mim, isso iria ser sempre impossível, porque eu estaria sempre ligada a ele, haveria sempre detalhes meus que iriam sempre fazer parte dele, da sua pessoa, da sua vida, da sua existência.
Sorri, afinal de contas, parecia que estávamos em sintonia, pediu-me uma segunda oportunidade, um recomeçar do zero, fiquei renitente e em silêncio, não sabia o que dizer e o que pensar, prometi pensar no assunto.
Hoje estamos de novo juntos, percebemos que fazemos falta um ao outro, que não sabemos viver na nossa ausência; por isso decidimos dar mais uma oportunidade ao nosso amor e à nossa relação. Estamos a recomeçar tudo de novo e estou feliz. Quanto ao Luís, recebeu uma proposta irrecusável de trabalho no estrangeiro, percebemos que podíamos manter a amizade, mas que não podíamos continuar a alimentar o nosso amor porque a distância ia fazer com que ele acabasse por se desvanecer com o tempo. Há relações que funcionam e outras que não devem ir além da sua simplicidade.
Realmente há sempre pessoas a quem ficamos ligados para sempre, de uma maneira ou de outra, quer queiramos, quer não, de uma forma que nunca saberemos explicar e isso faz com sejamos capazes de reavivar o melhor que há em nós.
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Manuscrito - Histórias que podiam ser a tua história
Non-FictionNeste livro compilo uma série de contos e histórias que fui escrevendo no meu blogue. Histórias sobre os mais diversos temas. Histórias que tocaram pessoas. Histórias que podiam ser a tua história.