"O Tempo não pára"

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Eu sei;Que o tempo não para;O tempo é coisa rara

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Eu sei;
Que o tempo não para;
O tempo é coisa rara.
E a gente só repara;
Quando ele já passou.

Tocava no velhinho rádio a pilhas da Ti Alice, e os anos que ele já tinha; tinha sido um presente de Natal da Ti Aninhas e do Ti João, ainda se recordava da alegria do Ti Manel, seu marido. Andava sempre com aquela geringonça atrás dele, presa no cinto das calças, lá ia ele para o monte sempre com o ouvido nas boas novas.

Agora era a única companhia da Ti Alice, lá no cantinho da cozinha onde gostava de fazer os seus cozinhados e os seus bordados, não passava um dia sem o ligar para ouvir os "Discos Pedidos", ouviam-se músicas tão bonitas, faziam-lhe recordar sempre os bons velhos tempos, da sua infância e adolescência. Ouvia cada fado mais lindo... Ainda se lembrava quando a sua falecida mãe cantava os fados da Amália Rodrigues pela casa, era um espanto ouvi-la, cantava tão bem. Na aldeia, toda a gente conhecia muito bem a Maria Queijeira, que vendia queijo do bom porta a porta, diziam que ela para além de vender bom queijo tinha alma de fadista.

Bem, depois dos fados, vinham aquelas músicas, que ela tinha ouvido antes de ontem lá no bailarico da aldeia, que punham toda a gente a dar um belo de um pézinho de dança, às vezes durava até altas horas da madrugada quando já o Sol nascia. Como ela adorava dançar, infelizmente, já não tinha a saúde de outros tempos, de quando era mais nova, e por isso já não podia andar metida nessas andanças e o Ti Manel... Coitado também já estava velhote, cansado e a saúde já era fraca, já não tinha paciência nem disposição para este tipo de coisas. Estava agora a lembrar-se, o que ela dançava com o Carlos, corriam as músicas todas, dançavam o tempo todo e só paravam quando o cansaço os obrigava. Era uma alegria e uma brincadeira pegada. Chegou a namoriscá-lo e tudo, mas ele não tirava os olhos da Mariazinha, hoje uma senhora toda prendada, eram grandes amigas, e por ela se apaixonou, casaram e tiveram dois filhos que já estão arrumados há muitos anos. Vivem e trabalham lá em Lisboa com as crianças, parece que têm dois meninos e uma menina, ouviu dizer à boca cheia pela Ti Joaquina. Do Carlos nunca mais o viu, nem ouviu falar dele, não sabe nada dele, ao que parece ninguém lhe põe a vista em cima há um bom par de dias.

Também gostava muito de ouvir, quando as pessoas ligavam para o senhor da rádio para lhe contar as suas histórias e pedirem aquelas músicas antigas e de outros tempos, às vezes dava umas boas gargalhadas mesmo sozinha, era tão engraçado. Gostava muito do senhor da rádio, o Paulinho como lhe chamava, um dia ainda havia de ligar para lá também, estava a ver se ganhava coragem para se chegar à frente, só para falar com ele, quem sabe, talvez um dia o convidasse para vir comer um patinho assado com eles.

O tempo começava a passar depressa demais para a Ti Alice, a idade já pesava nas rugas profundas que lhe marcavam o rosto, nos braços e nas pernas que há muito que tinham deixado de ser o que eram, nos movimentos lentos e frágeis, no olhar cansado da vida. Uma vida difícil de muito trabalho e pouca saúde, ainda se lembrava de há uns anos sair bem cedo pela fresca e correr o monte todo com as vacas e as ovelhas para as levar a pastar e ainda brincava com o Faísca, o velho lavrador da família, ceifava, apanhava o trigo e o centeio e até pegava no trator e lavrava as terras. Agora já estava um bocado enferrujada dos ossos, já não conseguia dar dois passos sem se cansar, por isso acabava por ficar por casa a tratar das coisas. Só saía na companhia do Ti Manel. Para a Ti Alice, velhice era sinónimo de solidão e pouco viver, principalmente agora que já não tinha a Joaninha e o Henrique com ela, os dois filhos que estavam para a França a trabalhar, só os via de ano a ano, já tinha também dois netinhos pequeninos mas ainda nem os conhecia, estava desejosa de os conhecer.

Ti Alice fica de repente alerta...

– Ainda bem que chegaste homem...
– Então, o que há?
– Escuta! Estás a ouvir?
– Estou a ouvir, estou, mulher!
– Sabes quem é? Conhece-la?
– Mas é... Não pode ser!

Era mesmo a voz da Ti Chica na rádio, toda a aldeia tinha parado para a ouvir, no dia seguinte não se falava de outra coisa.

– Então agora já acreditas!
– Que remédio tenho! E nem te cheguei a contar uma novidade, o Ti João comprou uma maquineta nova.
– Ai, sim?
– Sim, é muito engraçada, tens que ir lá ver. Chama-se, deixa-me cá ver se me lembro... Moblizão.
– Moblizão???
– Sim, é uma caixinha pequenina onde as pessoas falam e podemos vê-las também.
– Nunca vi tal coisa...
– Anda daí que eu mostro-te...

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