Estávamos a meio do nosso Interrail, a primeira grande viagem que os meus pais me deixavam fazer sozinha. Estava encantada da vida com ele a meu lado, era a viagem com que sonhava todas as noites de há uns tempos para cá. Partir assim com ele, sem destino, de mochila às costas. Saímos do nosso Alentejo, apanhamos o autocarro até Lisboa e depois seguimos de comboio até Madrid, tínhamos planeado ir visitar algumas capitais da Europa como: Madrid, Paris, Berlim e Munique. Esses eram os destinos que tínhamos escolhido para fazermos nitidamente uma viagem de sonho, a dois.
Os dias que passamos em Madrid foram mágicos, visitamos tudo, percorremos quase a cidade toda, passeamos, fomos ao Santiago Bernabeu assistir a um jogo do Real Madrid, vibramos com o Cristiano Ronaldo, tiramos fotografias, fomos jantar fora e deliciamo-nos com a Paella e o Flamenco. Foi um dia bastante preenchido, aproveitamos o tempo todo ao máximo, foi mesmo até à última gota, apesar de, os telemóveis não terem parado de tocar, coisa de pais-galinha. Faz parte...
No dia seguinte, fizemos novamente as malas, apanhamos o comboio e... Hasta la vista España; Bonjour Paris. Caía a noite quando a cidade do amor nos deu as boas-vindas, eu estava completamente nas nuvens porque nunca tinha ido a Paris, era a primeira vez que visitava a cidade. Mas desde a partida para Madrid que algo assombrava os nossos planos, a descoberta que tinha feito de véspera, que não sabia como contar ao Rodrigo. Na véspera da partida para Madrid, descobri que desde pequenina que tinha um problema congénito de coração que podia ser fatal a qualquer momento. Fiquei em choque e em pânico quando os meus pais me contaram, fiquei sem saber o que fazer e o que dizer, como reagir, como lidar com aquela notícia tão inesperada, tinha sido completamente apanhada de surpresa. Culpei os meus pais por nunca me terem contado nada, por só agora o fazerem. Disseram que era para me protegerem, e a partir desse momento comecei a perceber tudo imediatamente, o porquê de desde muito cedo andarem sempre excessivamente preocupados comigo, o medo e o receio das minhas saídas com as amigas, dos esforços, o facto de terem ficado muito renitentes quando lhes falei daquela viagem. Chorei, chorei amargamente, isolei-me no meu quarto, não jantei nada, precisava muito de tempo e espaço, de pensar, porque queria muito fazer aquela viagem, era o meu sonho e não ia ser aquela maldita doença no coração que me iria impedir de o concretizar. Só muito mais tarde voltei a falar com os meus pais, pedi-lhes muito, supliquei e implorei que me deixassem ir, que confiassem em mim, que eu me iria portar bem, que iria ter todos os cuidados e mais alguns. Depois de tantas conversas e de muita insistência, disseram que Sim. Fiquei radiante, mas ainda havia outro problema... O Rodrigo.
Passei a noite inteira a pensar como havia de lhe contar tudo. E foi em Paris que tudo aconteceu, à noite, durante o primeiro passeio que demos pela cidade. Contei-lhe tudo, ao início ficou estático e muito calado a olhar para mim, sem saber o que dizer e o que fazer e sem conseguir acreditar. Expliquei-lhe tudo sem lhe esconder nada, abraçou-me, chorou e disse que jamais me iria deixar, que iria estar sempre ao meu lado a apoiar-me. Fiquei muito mais aliviada e beijei-o apaixonadamente. Inexplicavelmente, durante a noite, eu comecei a sentir-me mal, com falta de ar, e arritmia cardíaca, o Rodrigo pegou em mim e levou-me logo ao hospital mais próximo, onde fiquei em observação. Quando acordei passadas algumas horas, estava sozinha na enfermaria do hospital, apenas se ouvia o burburinho de enfermeiros e pessoas a entrar e a sair, explicaram-me tudo o que se tinha passado, acalmei-me, olhei para o lado e em cima da mesa-de-cabeceira encontrei um envelope, peguei nele, abri-o e vi logo que era do Rodrigo, a letra dele era inconfundível. Pedia-me desculpa por tudo, por saber que a decisão, muito ponderada e pensada, que tinha tomado, a mais difícil de todas, iria acabar por me magoar. Dizia-me que ia voltar para Portugal, as lágrimas começaram logo a cair, foi terrível sentir aquela insensibilidade e indiferença para comigo, que o amava tanto, parecia não querer saber de mim, se estava bem ou melhor pelo menos. Dizia que não podíamos continuar juntos, que por muito que gostasse de mim, não queria viver o resto da vida com o medo constante de me perder. Uma grande desculpa. Fiquei triste e desiludida, magoada, o Rodrigo estava a acabar tudo comigo e acabava de me deixar quando eu mais precisava dele ao meu lado e isso jamais lhe iria perdoar. Dizia que iria gostar sempre de mim e que eu iria ser sempre uma pessoa muito especial para ele, mas dizer-me isso não chegava, não era suficiente, já não me reconfortava, não preenchia o vazio que eu já estava a sentir dentro de mim, a sensação de ausência de uma das pessoas que eu mais gostava e amava, que achava que sentia o mesmo por mim, mas pelos vistos estava redondamente enganada, que era um amigo de verdade, capaz de estar incondicionalmente ao meu lado. Mas não... Na primeira oportunidade, quando viu que as coisas estavam a começar a complicar-se, quando se sentiu sufocado, abandonou-me. É sempre mais fácil fugir dos problemas do que assumi-los, enfrentá-los e ajudar a resolvê-los. Dizia ainda que esperava que eu melhorasse depressa e que ficasse bem, que conveniente e que irónico, que me tinha visitado, mas que eu estava a dormir. Despedia-se com um até sempre, pedia-me novamente desculpa e que um dia o conseguisse perdoar.
Ali continuei sozinha, a vislumbrar o branco do teto, com a tinta a descascar, as manchas de humidade; a solidão a ser o meu corpo, a mágoa o meu coração, continuava a ter o rosto coberto de lágrimas. Não queria acreditar que tinha acabado de perder a pessoa que mais amava. Desejei que o meu mundo, parasse para sempre, para mim, que não tivesse aquela maldita doença para poder recuperar o Rodrigo.
Passou um ano, voltei para o Fábio, já tínhamos namorado há uns tempos, um namoro de curta duração, muito precoce, acabamos por nos separar por causa de uma estúpida discussão. Há quase um ano que não o via, mudou de cidade com os pais, já está na faculdade a tirar Medicina. Agora estamos bem, ele está muito diferente, mudou muito, é muito preocupado, atencioso e dedicado. Ama-me acima de tudo e não se importou nada com o meu problema.
É verdade, fiz um transplante de coração, depois de muitos estudos realizados descobriram que era a única solução para eu ter uma vida normal e sossegada. Apesar de todos os riscos inerentes, aceitei, fui à luta e à aventura, correu tudo bem e agora já posso amar de novo. Os meus pais contaram-me que o Fábio esteve sempre lá comigo o tempo todo, no bloco operatório e durante o tempo de recuperação, lembro-me bem de sentir a mão dele, entrelaçada na minha. Ajudou-me em tudo e foi uma enorme fonte de força, determinação, coragem e inspiração, uma pessoa exemplar. E nunca lhe conseguirei agradecer tudo o que ele me deu nos últimos seis meses.
O Rodrigo?
Nem uma visita, nem um telefonema para saber se eu tinha melhorado, talvez a culpa e o peso de consciência o impeçam de me vir ver, talvez a falta de coragem, não o deixe enfrentar-me.
Nunca mais o vi, mas algumas amigas minhas, disseram-me que continua sozinho.
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Manuscrito - Histórias que podiam ser a tua história
Non-FictionNeste livro compilo uma série de contos e histórias que fui escrevendo no meu blogue. Histórias sobre os mais diversos temas. Histórias que tocaram pessoas. Histórias que podiam ser a tua história.