"Uma alma demasiado aberta"

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Lília nunca imaginaria que um dia a vida a fosse marcar tão fortemente como aconteceu quando era adolescente

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Lília nunca imaginaria que um dia a vida a fosse marcar tão fortemente como aconteceu quando era adolescente. Há certas situações que passamos na vida que dificilmente somos capazes de esquecer por completo, de maneira a ser uma perfeita memória: cinzenta, nublada, desfocada, incapaz de voltar a ser reconhecida, de seguirmos em frente sem nos lembrarmos delas.

E tudo começou no início do décimo segundo ano, quando a turma unida, onde todos se conheciam muitíssimo bem uns aos outros e que desde a primária tinha vindo a acompanhar Lília em todos os anos de escolaridade, recebeu novos elementos vindos de uma outra escola. Num ápice, os novos alunos: três raparigas e um rapaz se integraram no grupo sólido e coeso de que era feita aquela turma de longa data e rapidamente os problemas começaram a surgir.

Lília nunca tinha sido uma jovem muito comunicativa, não tinha o espírito aberto, extrovertido e espontâneo da grande maioria dos seus colegas, porém tentava adaptar-se e os colegas também se foram adaptando à sua forma particular de ser. Era uma jovem tímida, algo reservada que só dava confiança a pessoas que realmente conhecia bem, sempre se tinha conhecido assim, sem saber concretamente o motivo, afinal de contas, cada um tem a sua maneira de ser e estar. Muitas vezes sem razão...

Quando aquela turma que sempre fora tão unida, menos esperava, a discórdia entre alunos começou a surgir, passou a existir um enorme choque de personalidades, Alexandra, Daniel e Clara eram rebeldes, partilhavam opiniões diferentes e adoravam folia, de lançar a confusão e principalmente de faltar às aulas e tentavam a todo o custo empurrar aquela turma para as suas erradas escolhas. Para além disso, a maneira de ser diferente de Lília começou a espevitar-lhes a curiosidade.

No início e muito subtilmente, aqueles novos colegas que facilmente tinham conquistado a turma, começaram a "meter-se" com Lília, brincando com a sua timidez, com alguns dos seus gostos e com o seu jeito tímido e reservado de ser. Ela não dava muita importância e chegava a levar aquelas atitudes dos colegas para a brincadeira, mas o que começou por ser uma brincadeira, num muito curto espaço de tempo transformou-se em algo muito mais sério. E inevitavelmente, aqueles que tão bem conheciam Lília acabaram por ceder, por não reagir à situação e deixaram-se levar pela brincadeira daqueles colegas desconhecidos, até esta tomar proporções difíceis de alterar.

Um dia, Daniel decidiu levar a brincadeira longe demais. Num fim-de-semana, reuniu-se em casa do Fred: um amigo especialista em informática e convenceu-o a entrar no perfil de Lília no Facebook para gozarem um pouco com ela, porém as ideias saíram um pouco do controlo. Fred começou por alterar os dados de acesso e depois decidiu pegar numa das muitas fotografias que Lília continha na sua página e modificou-a através de um programa de edição de fotografias.

Num abrir e fechar de olhos, o perfil da colega foi invadido por piadas e comentários insultuosos, o que apanhou Lília de surpresa. Por mais que tentasse aceder à sua conta os dados de acesso davam sempre errados e ela começava a desesperar por não saber o que se estava a passar e por já quase toda a escola ter visto as publicações, piadas e comentários que estavam na sua página. Precisava de apagar tudo, mas não sabia como fazê-lo.

O ambiente na escola tornou-se insustentável, rapidamente ela passou a ser alvo de gozo, por parte de todo e qualquer aluno, de piadas e comentários mal-intencionados que eram lançados para o ar sempre que passavam por ela, para além disso, ela passou a viver rodeada dos mais diversos burburinhos. Ela tentou procurar apoio nos amigos e colegas com quem sempre tinha convivido e em quem confiava, mas parecia que todos tinham sido enfeitiçados pelos novos colegas. Ela não demorou muito tempo a isolar-se dos colegas perante a vergonha que estava a passar, começou a faltar às aulas, nos intervalos sentava-se sozinha na sala de convívio. Na hora do almoço, almoçava sozinha a um canto, enquanto se ouviam gargalhadas à sua volta. Para piorar ainda mais as coisas, alguns dias mais tarde, começou a receber mensagens escritas vindas de um anónimo no telefone com piadas alusivas aos conteúdos que eram partilhados no seu Facebook, agora hackeado.

Sentia-se perdida, sem saber o que fazer, como reagir, com quem falar. Desligou o telefone e continuou a esconder a situação da sua família, a quem deveria ter pedido ajuda. Pouco tempo depois, ela acabou por adoecer, a repercussões da brincadeira parva e inconsequente dos colegas tinham-na levado a deixar de ser alimentar, não conseguia dormir, não conseguia sair de casa, tinha perdido a vontade de viver.

Foi através de uma professora que a sua família teve conhecimento de tudo o que se passava e depressa decidiram atuar. O pai de Lília decidiu falar com um amigo que era especialista em informática, de forma a descobrirem quem teria entrado no Facebook da filha e os resultados não tardaram em chegar. Através do IP (número de Internet) conseguiram descobrir uma morada, cujo endereço foi dar a casa de Fred e pelo final da tarde os pais de Lília estavam a bater-lhe à porta. Entre explicações e interrogações mostraram-lhe quão mal tinha feito à filha em prol de uma brincadeira. Fred mostrou-se ciente de que tinha realmente ido longe demais e no mesmo momento apagou todas as publicações insultuosas e repôs os dados de acesso, comprometendo-se a não repetir a brincadeira. Sabia que se não cumprisse com o prometido viria a ter problemas com a polícia.

Mas, apesar do problema ter ficado resolvido, Lília nunca mais foi a mesma jovem alegre e descontraída, transformou-se numa jovem deprimida, fechada e amedrontada, que dizia constantemente que já não queria viver, que preferia morrer. Os pais aconselharam-na a afastar-se da Internet e das redes sociais por uns tempos, mas o principal medo dela era encarar as pessoas. Lília teve apoio psicológico durante uns meses, para tentar contrariar a forma amarga e angustiante como ela encarava e olhava a vida. Foi uma luta muito dura e demorada que só terminou vinte e quatro meses depois.

Hoje ela é uma miúda diferente mais consciente que a sociedade em que vivemos não é perfeita e tem inúmeras falhas. Na realidade ninguém é perfeito, o ser humano foi feito para errar e falhar, caso contrário seríamos máquinas.

Hoje é um dia especial para ela, na faculdade que frequenta decidiram trazer o cyberbullying a debate e ela foi convidada a falar da sua experiência. Sente-se nervosa, mas confiante por poder inspirar e ajudar outras pessoas que tenham passado o mesmo que ela.

Relativamente aos colegas que a marcaram e magoaram no passado, nunca mais soube nada deles. Na altura chegaram a pedir-lhe desculpa por tudo o que a tinham feito passar e ela até acabou por perdoá-los, mas, infelizmente, nem sempre um pedido de desculpas consegue apagar as marcas deixadas na alma e na pele.



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