"Nem todos são fiéis amigos... Mas ele era"

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Ainda hoje não tenho palavras para explicar as saudades que sentia dele, a falta que ele me fazia e a dor que – apesar de quase atenuada – ainda permanece e me consome todos os dias

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Ainda hoje não tenho palavras para explicar as saudades que sentia dele, a falta que ele me fazia e a dor que – apesar de quase atenuada – ainda permanece e me consome todos os dias.

Desde a minha infância que me recordo de não fazer amigos facilmente, não gosto de me dar muito às pessoas; afinal de contas hoje em dia não podemos confiar muito em quem nos rodeia e à medida que fui crescendo e percebendo as pessoas fui compreendendo que de facto à medida que evoluímos muitas vezes vamos desiludindo quem está à nossa volta. Vamos perdendo essência, vamos perdendo sensibilidade, vamos perdendo humildade e isso faz com que nos afastemos uns dos outros.

Sempre me lembro que me dava mais à natureza que às pessoas, ninguém compreendia porquê e cresci a ouvir dizer que mais parecia um bicho-do-mato, lembro-me de crescer a pedir aos meus pais para ter um animal de estimação em casa, todos os meninos com quem brincava na infância tinham um: ou um cão, ou um gato, ou um peixe, ou um pássaro. E eu não gostava de ser diferente, por isso, tanto insisti que num aniversário o meu pai me fez uma surpresa: numa pequena caixa de cartão encontrei um pequeno gato cinzento e preto, meio siamês, com um grande coração invertido no nariz e uns grandes olhos azuis da cor do oceano.

Os meus pais olhavam para mim com um olhar demasiado expressivo e um grande sorriso, esperando que eu mostrasse entusiasmo pelo animal, já que era algo que queria tanto, mas na verdade eu não simpatizei logo com ele. Eu não queria um gato, queria um cão, um pastor alemão como o que aparecia nas séries de televisão e fiquei um bocadinho zangado.

Nos dias que se seguiram, não dei qualquer tipo de atenção ao animal, eram sempre os meus pais que cuidavam dele. Sentia-me desiludido por sempre ter desejado ter um cão e ter dado de caras com um gato. O felino circundava pela casa: miando, roçando a sua bela cauda pelas nossas pernas, pedindo comida, festas e brincadeira, por incrível que pareça, apesar de eu não lhe dar grande atenção, ele insistia em andar sempre atrás de mim. Onde eu estivesse, o gato estava lá: deitado em cima da cama ou no chão ou como uma espécie de biblô sentado em alguma estante. Aquilo irritava-me porque dava a sensação que estava a ser perseguido, por um mero gato.

Mas o que parecia improvável, tornou-se inevitável; com o passar do tempo e dos dias fui-me afeiçoando ao Pintas. Sempre que chegava a casa, da escola, lá estava ele sentado à porta à minha espera. Dava-lhe dois ou três biscoitos e quando dava por ela, o Pintas já estava deitado em cima da minha cama à espera de umas festas. Ficávamos a brincar durante algum tempo e depois eu ia fazer os trabalhos da escola e ele ficava enroscadinho no meu colo até eu terminar.

Também eram várias as vezes em que a seguir ao jantar, eu e o Pintas adormecíamos no colo um do outro, a ver os meus desenhos-animados preferidos, assim foi a rotina durante vários dias, semanas e até anos. Até eu crescer e me tornar um verdadeiro homenzinho, mas sem nunca deixar que nada mudasse entre nós. Eu e o Pintas tornamo-nos amigos inseparáveis, a ponto de eu fazer inveja aos meus amigos ao dizer que mais ninguém tinha um amigo tão especial como eu, toda a gente queria saber quem era o meu amigo especial, mas eu mantinha o mistério.

Eu e o meu amigo felino crescemos na companhia, um do outro e já não sabíamos viver separados, éramos felizes ao lado um do outro, os meus pais diziam muitas vezes que tinha sido com aquele felino que eu tinha aprendido o verdadeiro sentido da amizade, no entanto, eu jamais imaginaria que o pior estivesse para chegar.

O meu pai recebeu uma proposta de trabalho no estrangeiro e estava a ponderar levar toda a família, fiquei de rastos porque não sabia que futuro esperava o Pintas. Não podia deixar o meu fiel amigo sozinho em Portugal sem ninguém que cuidasse bem dele e lhe desse o amor que eu lhe dava. Alguns dias depois fiquei a saber de uma novidade que me deixou devastado, os meus pais não contavam levar o Pintas, não podia ir no avião e se fôssemos de carro era uma viagem demasiado longa para ele. A única solução que pareciam ter era dá-lo a uma associação animal ou a alguém, não queria acreditar, depois de termos cuidado e tratado do gato quase a vida toda, só porque íamos mudar de vida, o gato já não podia fazer parte dos nossos planos.

Revoltei-me, não achava uma atitude justa da parte dos meus pais, senti-me ofendido, magoado e desiludido. Não me conformava com a situação, apesar de saber que não podia ficar em Portugal sozinho por causa de um gato. Ainda que sentisse que ele era o meu melhor amigo. Chorei noites a fio, baixei as notas, e até comecei a comer mal.

Os dias foram passando e a tristeza que me consumia não passava, cada vez que olhava para o Pintas, apetecia-me fazer as malas e fugir de casa só com ele, conformei-me e uma semana depois estávamos de malas e bagagens prontas para partir. Decidimos de antemão deixar o Pintas numa associação animal, se eu soubesse descrever a tristeza que vi desenhada nos olhos azuis do gato. Partiu-me o coração, chorei a viagem toda, de consciência pesada e com o arrependimento em cada suspiro.

A minha estada naquele país desconhecido e naquela cidade que em nada me dizia: nem nas pessoas, nem nos lugares, nem nos cheiros, nem mesmo no ambiente, não durou mais de cinco dias. Não me sentia a mesma pessoa, sentia-me fragmentado de todas as formas e maneiras, sentia-me diferente, já não era eu, não me identificava com aquela vida. Não fazia sentido para mim, estar ali, ter viajado para tão longe abandonando o amigo mais fiel que tinha encontrado.

Já com os dezoito anos feitos, disse aos meus pais que iria regressar para Portugal, que iria procurar o Pintas e voltar à nossa casa, ao início os meus pais não aceitaram muito bem nem compreenderam a minha decisão, mas eu mantive-me firme e mostrei convicção na minha decisão e numa manhã fria de dezembro, apanhei o avião e regressei a Portugal e à minha cidade.

Fui à associação animal procurar o Pintas e para minha felicidade ele ainda se encontrava lá, por adotar. Recuperei o meu fiel amigo, voltei a inscrever-me na escola e contra todas as perspetivas somos felizes assim. Os dois. Apenas os dois.

Os meus pais – ao que sei – também são felizes por terras suíças, perdoei-lhes o facto de terem traído a confiança de um animal de estimação que aceitaram como seu.

O Pintas acaba de subir para o meu colo enquanto eu escrevo este texto num caderno que costuma andar sempre comigo para os meus rabiscos, olha para o papel e depois para mim com aqueles bigodes infinitos, era capaz de dizer que está sorrir.

Esta é a sua história. Esta é a minha história.

Nestas linhas partilhei a nossa história, o amor que nos une e quão importante é o valor da amizade... mesmo de um simples gato.

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