Seu corpo ainda doía, mas não ela se deixaria levar pelos acontecimentos recentes, não se deixaria levar pelas emoções. O sol já tinha nascido, as sacerdotisas já estavam a todo vapor, trabalhando na biblioteca, Gwyn treinava, e treinava até seu corpo não obedecer mais a mente. A cada lembrança, cada memoria a corroía de dentro para fora. Toda vez que pensava em seu pai, lhe vinha Catrin e sua mãe os seus pensamentos.
A cada soco na madeira lembrava da sensação e do sentimento que habitava seu corpo naquele dia fatídico. Todos os aprendizes apavorados, correndo para todo canto, os soldados de Hybern matando qualquer um que estivesse no seu caminho, Gwyn tentara, tentou com tudo o que podia, usou sua pedra de proteção para tentar salva-los, mas não adiantou. Ela falhara com todos eles, e isso a estava matando dia após dia.
Ainda podia sentir o sangue de sua irmã jorrando no seu rosto enquanto a estripavam, aquele cheiro de sangue e o gosto de ferro encharcando sua boca. Gwyn girava, se abaixava, desviava de golpes invisíveis. Sua visão ficou embaçada com as memorias passadas, o corpo do general de Hybern se esfregando ao dela, aquelas mãos asquerosas a segurando e batendo nela para que ficasse quieta. Mais dois soldados chegaram para assistir ao show que estavam fazendo, assistindo enquanto seu corpo era violado, sua alma morria aos poucos, até não sentir nada.
As estocadas fundas e fortes já não machucavam, não sentiu as lagrimas escorrendo sem parar pelo seu rosto, Catrin com o corpo todo aberto jogado do outro lado da sala. Sua voz sumiu, não gritou, as forças se esvaíram, ficou quieta, parada enquanto cada gota de humanidade era arrancada de si. E depois, escutava a risada daqueles três soldados, olhando-a aberta, escancarada em cima da mesa, sangue escorrendo pelas suas pernas, e eles abriram o alçapão onde as crianças estavam e mataram todos eles.
De repente, um estrondo, luzes azuis piscando e irradiando toda a sala onde estavam, um minuto os soldados de Hybern estavam a sua frente, no outro, caídos no chão, e um illyriano de cabelos negros e olhos cor de avelã surgiram na sua vista, ele lhe entregou um manto e não disse uma palavra, a segurou gentilmente e levou-a embora para a Casa no Vento.
Gwyn gritou. A madeira a sua frente se partiu ao meio, lascas voaram por toda parte, queimando, seu fogo. Olhou para suas mãos brilhando e flamejantes, caiu de joelhos e deixou todas aquelas emoções tomarem conta de si novamente, como um pesadelo, repassando e repassando em sua mente toda vez que fechava os olhos. Um soluço saiu de dentro de si, estava em pânico, não conseguia respirar, tremia conforme as lagrimas quentes e salgadas escorriam pelo seu rosto sem parar. Abraçou o corpo com força, como se pudesse se reduzir a nada, sumir, aquela dor toda ir embora. Em posição fetal ficou ali, no chão do anel de treinamento, até sentir mãos fortes levantando seu rosto vermelho e molhado.
A primeira coisa a atingir sua visão foram aquele par de olhos avelã, sempre tão intensos e silenciosos, sempre observando tudo, cada detalhe, nunca perdendo nada. O ouvido de Gwyn estava sob pressão, a boca de Azriel mexia, mas ela não ouvia nada que dizia. Deixou que ele a aninhasse em seus braços fortes e aconchegantes, até que os tremores passassem, as mãos voltassem a ficar quentes e não mais frias e molhadas.
~
Azriel sentira no momento em que Gwyn começou a passar mal. Pelo laço ele sentia toda a culpa, todas as sensações daquele dia em Sangravah. Voou correndo para a Casa do Vento, disparando pelos corredores, com uma pressa impressionante. Quando a porta de vidro da sala de treinamento atingiu sua visão, seu peito parou, o grito de Gwyn ressoando alto, ele caindo de joelhos e se abraçando no chão.
Era como se ele fosse ela, conseguia sentir todas as coisas que Gwyn sentia, a falta de ar, aquele pânico se instalando dentro de si, a sensação de estar perto da Morte, como se ela estivesse esticando aquelas mãos negras de sombras para leva-lo.
Azriel sentia isso constantemente, nunca contou a ninguém muitos detalhes sobre os anos que esteve preso, sem luz do sol, sem poder sentir a brisa fresca da manha bater em seus cabelos. Sem nunca poder ter sentido a sensação de voar. E suas mãos sempre machucadas, seus irmãos nunca lhe deram tempo o suficiente para elas se curarem. Antes que os corte, e feridas se fechassem eles já estavam lá, com outro experimento para realizar, Azriel como cobaia.
Sempre sentia uma presença silenciosa o observando, sempre a espreita, lá embaixo, naquele porão escuro. Foi quando, um dia não aguentou, chorou e chorou, até as lagrimas não saírem mais, aquela presença veio e o acalmou, as sombras o consolaram, dia a após dia, conseguiu controla-las, conversar com elas, suas únicas amigas e companheiras, as únicas com quem ele poderia contar de verdade. E nunca mais o abandonaram, quando eram situações mais difíceis de se enfrentar, ou mais serias, elas se dispersavam como se quisessem tira-lo dali, leva-lo para um lugar mais seguro e confortável. Mas com Elain fora diferente, com ela, as sombras iam totalmente embora, antes Azriel pensava que elas se sentiam atraídas e confortáveis na presença da Archeon. Mas era totalmente o contrário, elas tinham medo de Elain, medo das sombras espinhosas que a grã-feérica tinha sob controle desde quando fora Feita.
Depois de muito tempo, a única pessoa que ele tinha certeza que as sombras gostavam era dele mesmo e da sacerdotisa ajoelhada no anel de treinamento chorando. Elas cantavam e dançavam quando Gwyn estava perto, elas eram apaixonadas pela jovem de cabelos ruivos como fogo que queimava dentro dela.
"Nossa Gwyn. Ajude-a"
As sombras estavam desesperadas, forçando a mexer os pés e ir em direção a Gwyn. Chacoalhou a cabeça e correu ate onde ela estava, encolhida. Gentilmente pegou as mãos dela do rosto de segurou-as.
-Está tudo bem Gwyn. Estou aqui com você. -Ele dizia baixo, mas aquela sacerdotisa que estava na sua frente não era Gwyn. As suas pupilas estavam dilatadas, quase toda preta, era puro pânico brilhando neles. As mãos meladas e frias, como as de uma pessoa morta.
O mestre-espião segurou o rosto dela e a fez olhar no seu rosto, reconhecê-lo, saber que estava tudo bem. Pelo laço, a acalmou, lançando pensamentos felizes, dele com seus irmãos, de quando Gwyn ria com Nestha e Emerie nos treinamentos. Abraçou Gwyn até o tremor passar, mesmo assim não a soltou, não queria, não estava preparado para solta-la. Não sabia quanto tempo se passara, horas, minutos, não importava, sentados no chão, Azriel e Gwyn ficaram abraçados um no outro, suas cicatrizes internas se curando uma na outra, os traumas sendo substituídos por um por pensamentos bons, apesar da situação em que estavam.
E as sombras cantaram, melodias felizes para os dois feéricos quebrados por dentro, a alma destruída assim como sua humanidade. A cada verso, cada palavra iam entrando pelo ouvido de Gwyn e Azriel e ficando no coração e na alma de ambos.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Corte dos Sonhos e Pesadelos
FantasyBriallyn morreu mas o mau ainda permaneceu com o feiticeiro Koschei e suas criaturas amaldiçoadas. Gwyn tenta superar seus traumas do passado se tornando Valquíria. Por meio da música um encantador de sombras e uma Valquíria estarão ligados. Cicatri...