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Na escuridão da noite, da janela de sua biblioteca, ela cantarolava baixinho, olhando para as estrelas dispersas no céu. Ela sabia, podia sentir do outro lado de Prythian, havia uma pessoa, uma em quem ela fosse ligada, a pessoa que o Caldeirão tinha feito para ela. O vento gelado batia em seu rosto, trazendo um aroma diferenciado, um cheiro de cedro misturado com névoa, foi invadindo seu quarto anexado na biblioteca de Sangravah. Gwyneth Berdara sentiu um conforto agradável com aquele cheiro, uma paz trazida pela brisa noturna. Fechou os olhos suspirando fundo, deixando sua imaginação fluir e fluir através de seus pensamentos. Então um macho veio a sua mente, ela imaginou que ele era o dono daquele cheiro, os cabelos negros bagunçados pelo vento, os olhos mais intensos que ela já vira, de cor avelã. Mas o que fez Gwyn ficar divagando em pensamentos, foram as mãos do lindo macho, coberta de cicatrizes. Despertou um desejo de poder passar os dedos pelas elevações das cicatrizes, admira-las e perguntar ao dono como elas nasceram. Mas a sacerdotisa se lembrou, aquilo era tudo sua imaginação, não existia um homem daquele jeito, ela fantasiara ele, mas por dentro sua alma gritava e saltitava como se quisesse lhe contar alguma coisa, cantando:

"Por que toda noite eu converso com a lua e as estrelas, tentando chegar até você."

Do outro lado do continente, a mesma brisa batia no rosto bronzeado do encantador de sombras. Do alto do telhado da Casa do Vento, ele tinha uma visão de quase toda Velaris, podia ver as três montanhas, a cidade toda iluminada abaixo e o céu noturno. Todas as noites ele ficava ali, procurando respostas na escuridão, e fazendo perguntas para as estrelas, ainda tinha esperanças, não iria desistir. Então, um cheiro doce feminino o atingiu. Não havia mais ninguém ali com ele, era um cheiro trazido pelo vento, a brisa gelada do inverno. Azriel poderia ficar horas sentindo aquele cheiro, um aroma de jasmin misturado com lavanda. Imaginou quem seria a dona daquele cheiro, se é que fosse uma pessoa. Imaginou como ela seria, a cor de seus cabelos, de seus olhos, se eles seriam claros e límpidos sempre brilhando ou se mostrariam a completa escuridão. O mestre-espião guardou aquele cheiro consigo, em sua memória para que sempre nas horas mais difíceis pudesse achar conforto naquele aroma, na mulher que estaria em algum lugar das terras de Prythian. Suas sombras se dispersaram, querendo ir em direção aquele cheiro, que assim como elas, o atraia para ir de encontro aquela fêmea. No silêncio da noite, Azriel cantou, baixinho para que ninguém escutasse.

"Eu sei que você está em algum lugar por aí... em um lugar distante. Mas eu quero você aqui, de volta para mim."

~

Gwyn estava sonhando. Fazia muito tempo que ela tinha sonhado da última vez. Nos dias depois de Sangravah, não tinha uma noite que não tinha pesadelos. Mas aquele era mais terrível que todos os outros. Ela estava na biblioteca novamente, e como se a cena se repetisse, os soldados de Hybern aterrissaram e foram até ela.

A sacerdotisa viu aqueles rostos nojentos sorrindo para ela assim que mataram sua irmã a sua frente e agora exigindo que ela dissesse onde estavam os outros aprendizes.

Era tudo mentira, não era verdade, era um sonho e ela precisava acordar.

Mas ela não acordou. O macho abusou dela de novo e de novo, Gwyn não sabia dizer se aquilo que estava acontecendo era real, mas então um baque soou. Um brilho luz azul inundou a biblioteca. O macho de seus sonhos, do fruto de sua imaginação aterrissara ali em Sangravah. Azriel começou a atacar os machos soldados de Hybern, mas ao chegar no último ele não conseguiu desviar de um golpe na barriga. O macho enfiou sua lâmina no estômago de Azriel que caiu de joelhos no chão, tossindo sangue e Gwyn ficou ali imóvel sem poder ajudar em nada.

Como se já não bastasse, o soldado arrancou a lâmina e enfiou novamente, só que desde vez no coração de seu parceiro que caiu morto no chão. Novamente ela não pode fazer nada para salvar sua irmã, não conseguiu esconder os aprendizes e não conseguiu ajudar Az.

Gwyn acordou gritando, ainda com a imagem de Az e sua irmã mortos no chão. O ar faltava em seus pulmões, a bile subia e subia ameaçando sair de sua boca. Seu corpo tremia como nunca, a sacerdotisa sentiu mais quentes em torno dela. Abriu lentamente os olhos e o viu.

-Era um sonho Gwyn. Um pesadelo. -ele a confortou.

Gwyneth estava imobilizada no terror, as pupilas dilatadas, as mãos tremendo e pegajosas de suor. Sua mente totalmente apagada, só se via a imagem de Azriel morto e sua irmã sangrando no chão.

O encantador de sombras tinha medo de toca-la, no estado em que sua parceira estava, tinha medo que se a segurasse com muita força ela estilhaçasse em suas mãos.

-Está tudo bem agora. Nada daquilo era real, está me escutando? -Azriel estava desesperado, nunca viu ninguém em completo terror antes por conta de um pesadelo, só ele ficava assim mas ninguém nunca o ajudou a superar aquilo ele teve que se virar sozinho.

Gwyn finalmente despertou, o olhou nos olhos e se agarrou a seu parceiro como se tivesse medo que ele sumisse. Ela chorou desesperadamente, o rosto enterrado no pescoço quente e nu de Azriel. Os espasmos não estavam diminuindo mas ela tinha certeza agora que não era real, pelo menos em parte. Sua irmã ainda estava morta assim como as outras sacerdotisas que ela não pode salvar.

-Eu não posso... não posso. -Os olhos arregalados de Gwyn estavam dispersos, desfocados.

-O que você não pode meu amor? -Azriel sussurrou se agarrando mais ainda na sacerdotisa, a abraçando com força.

-Não posso... não posso perder mais ninguém. Não posso ter mais mortes nas minhas mãos.

-Você nunca teve e nunca terá. -Az conhecia aquela culpa, mas ao contrário de Gwyn, ele matara e torturara pessoas, e não se orgulhava disso. Gwyn não pode fazer nada em Sangravah, se ele não tivesse chegado naquela hora, só os deuses sabiam o que poderia ter acontecido com sua parceira. -Você não vai perder mais ninguém...

-Você promete? Promete que não vai se arriscar? -Gwyn perguntou com a voz tremendo em meio a soluços.

-Claro que prometo meu amor. Eu demorei muitos anos pra te encontrar, e agora que estamos juntos nada vai te tirar de mim. -Ele deitou e fez com que Gwyn se aconchegasse nele.

-Nada vai te tirar de mim também. -Gwyn sussurrou, e no silêncio reconfortante, as tremedeiras foram passando, o corpo dela não estava mais tenso e finalmente ela pegou no sono novamente, assim como Az.

Corte dos Sonhos e PesadelosOnde histórias criam vida. Descubra agora