Bóris Tadeu Tavares

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Pelotas, RS

Boris Tadeu é um rapaz indígena do povo Kaingang, careca, usa roupas com cores quentes e desde cedo cobre seus olhos com óculos escuros redondos. Perdeu sua família em uma enchente, então cresceu num abrigo com outros sobreviventes, criando uma nova família. 

O centro da vida espiritual entre os Kaingang é ocupado pelo ritual de culto aos mortos, chamado Kiki, então, quando a enchente destruiu suas casas, os sobreviventes se uniram.

Os Kaingang acreditam na cosmologia dualista, onde são divididos em dois grupos: Kamé, a quem pertence o sol, e Kairu, a quem pertence a lua. Todos os seres da natureza se dividem nessas duas metades, Kairu com os malhados/pintados e Kamé com os riscados, tanto animais como as plantas se classificam assim.

As famílias também se dividem dessa forma, sendo que um membro da família Kairu precisa se casar com alguém da família Kamé para que as duas metades possam se unir novamente. Os filhos, independente do sexo, pertencem à metade do pai, e assim seguem por gerações.

Embora exista a divisão, ambos se unem para o ritual dos mortos, o processo ritual é marcado pela reunião dos rezadores em três fogos acesos, em dias diferentes, no terreno do organizador, local conhecido como "praça da dança" ou "praça dos fogos". O primeiro fogo é aceso um dia antes de cortarem um pinheiro que será usado como konkéi, um tipo de vasilha onde será servido o Kiki (cerca de 70 litros de mel e 250 litros de água) que dá nome ao ritual. Cada família acende uma chama.

O segundo fogo ocorre na noite seguinte e antecede o início da preparação do konkéi, são 4 chamas, duas de cada família.

O terceiro fogo, o mais importante de todos, acontece dois meses após a colocação da bebida no recipiente, são acesas 6 chamas, três de Kairu e três de Kamé.

Os rezadores permanecem durante a noite ao redor dos fogos, acompanhados por outros integrantes das respectivas metades, entoando cantos e rezas. Durante esta etapa, determinadas mulheres, as péin, realizam as pinturas faciais (com tintas obtidas pela mistura de carvão e água), cuja finalidade é a proteção dos participantes contra os espíritos dos mortos de sua metade. São estas mulheres que estão preparadas para entrar em contato com os objetos dos mortos, sem correr os riscos daí advindos. Os rezadores de uma metade dirigem suas rezas para os mortos da metade oposta. Eles rezam, cantam e tocam instrumentos de sopro e chocalhos. Ao amanhecer os grupos se deslocam da praça de dança para o cemitério, onde novamente são realizadas rezas para os mortos nas suas sepulturas. Quando retornam para a praça de dança os grupos se fundem em danças ao redor dos fogos. O ritual é concluído com o consumo da bebida, do Kiki. 

Boris era do lado Kairu, ainda muito jovem pra entender o que era tudo aquilo, mas observava o fogo com atenção. Todas aquelas tochas pareciam se comunicar com ele, a claridade lhe atraía, mas os adultos o advertiam para ficar longe do fogo.

Seus óculos escuros eram usados porque muitos tinham medo de seus olhos, alguns até contavam que se fossem vistos diretamente poderiam ficar loucos, até morrer. Boris Tadeu no início não sabia se era verdade ou exagero de um povo, mas os usava. Infelizmente, para ele, foi inevitável olhar para algumas pessoas, comprovando o que lhe contaram.

Tinha antlofobia, medo de enchentes e inundações, pois achava que podia perder sua família mais uma vez. Conforme crescia, percebia um apego maior ao fogo, quase como um "amigo" com quem se comunicava. Odiava as queimadas nas florestas, para ele era como ver o fogo sendo usado de forma incorreta, o que o enfurecia.

Uma noite, já com seus 25 anos, saiu para admirar a lua cheia no céu, tirou um pouco seus óculos, já que não havia mais ninguém por perto. Nos arredores, havia árvores corticeira (também chamadas de árvore-de-coral ou crista-de-galo), comuns no sul, embora fossem símbolo argentino. Ele se aproximou para ver suas belas flores vermelhas de perto, foi quando ela de repente pegou fogo, o que o fez cair para trás no susto. Recolocou os óculos escuros para poder suportar a claridade, as folhas emanavam chamas de variadas cores e suas labaredas não se desintegravam, trazia uma sensação de proteção e paz que há muito não sentia. De repente, achou ter ouvido uma voz vinda do fogo:

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