Final

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Manaus, Amazonas

Carol tomou um banho e se arrumou, pensativa sobre tudo. A família Pererê era mesmo acolhedora, a fazia se sentir bem, mas e sobre seus pais? Respirou fundo. Eles foram convidados para o jantar, chegariam a qualquer momento. Colocou sua blusa verde e um short, seus brincos de penas. Desceu para a cozinha, o senhor Estevão estava no telefone, pediriam comida vegana. Sara estava sentada conversando com a mãe, esboçava um sorriso tão despreocupado, queria ter um pouco dessa confiança.
Bateram na porta, Janice se levantou para atender. Nilton Pires, um indígena nawá de cabelos pretos, curtos. Usava alargador nas orelhas e um adorno no queixo, junto à ele vinha Mariana Pires, uma bela indígena ruiva, seus cabelos iam até os ombros.
— Bem vindos! — sorriu Janice — Ainda bem que vieram!
Mariana respirou fundo, um semblante preocupado. Nilton fechou a cara:
— Como pode estar tão animada?
— Vai entender logo. — ela piscou pra eles, os guiando até a mesa.
A comida já havia chegado, Estevão foi até as garotas:
— Agora é a entrada triunfal de vocês! — estava realmente animado, mal podia se conter.
Elas deram as mãos, caminhavam em passos tímidos até a mesa. Carol paralisou ao ver seus pais, não sabia nem como reagir. Sara acenou:
— Oi, senhor e senhora Pires! Voltamos!
Mariana correu para abraçar sua filha, Nilton as fitava, incrédulo. Virou-se para Estevão:
— Quando elas voltaram? Porque não nos avisaram? Tem ideia de como ficamos preocupados?
— Calma, Nilton! — o homem mantinha o sorriso — Elas chegaram hoje à tarde, e exatamente por isso convidamos vocês pra virem aqui! Não é necessário esse tom de acusação.
— Mas podiam ter dito que era isso!
— Mas assim acabaria a graça.
— Graça? — Nilton levantou nervoso, batendo as mãos na mesa — Tudo pra você é uma piada o tempo todo? É minha filha, Estevão!
— E a minha também. — ele não se importou com a alteração no tom de voz — Eu sabia que se soubessem correriam pra cá, elas precisavam se preparar pra ver vocês.
— Do que está falando?
— Nilton, — chamou Mariana — Vai com calma. Nossa filha está bem. — ela sorria enquanto analisava o rosto de Carol de perto, procurando se havia algum arranhão
Ele andou até ela, precisava conferir por ele mesmo.
— O que aconteceu? Onde vocês estavam esse tempo todo?
— Pai...
— É uma longa história, senhor Pires. — Sara sorriu pra eles — Vamos nos sentar à mesa e explicaremos tudo!
Ele aceitou, meio a contragosto.
Foi um pouco mais difícil explicar sobre seus poderes, ao contrário dos pais de Sara, eles não esperavam algo assim, foi necessário uma pequena demonstração dos ventos para que acreditassem. Estevão ficou muito empolgado ao ver o potencial de sua filha, mas Mariana parecia assustada.
— Vocês... Sempre puderam fazer isso?
— Carol também mexe com vento? — perguntou Nilton
— Não, pai. Meu poder mexe mais com a natureza... Acho que é mais fácil mostrar minha... "Transformação".
Ele não teve tempo de questionar o que ela ia fazer, viu os olhos dela ficarem incandescentes, seus cabelos lisos começaram a se levantar, se tornando fogo.  Seus pais ficaram surpresos ao vê-la daquele jeito, então ela voltou ao normal:
— Meu guardião é o Curupira. Seus primeiros registros são entre os Nawá, nosso povo... — ela baixou a cabeça.
Mariana e Nilton se entreolharam:
— Filha... — ela começou — Alguém te falou sobre nosso povo?
Ela assentiu em silêncio.
— Nós não queríamos que ficasse mal. — disse o pai, colocando a mão em seu ombro — O que houve com os Nawá foi há muitos anos...
— Quase fomos extintos... — ela disse em tom sério, porém triste — Durante os últimos 100 anos não havia qualquer registro da existência desse povo... Quando eles chegaram... Nosso povo tinha que escolher entre ser escravo, fugir ou morrer na tentativa de fuga... Mortos por doenças, outros caçados como animais... Negaram a própria identidade por anos para não serem discriminados... Crianças tiradas de suas famílias...
— Muito tempo se passou até que pudéssemos nos assumir Nawá novamente. — disse Nilton — Nosso povo permaneceu no anonimato por anos.
— Minha filha... — disse Mariana — Quando você nasceu, deixamos pra trás nossas terras no Vale do Juruá para que não precisassem conviver com isso. O que houve com nossos antepassados não tem a ver com você, precisamos nos reerguer e seguir em frente.
— Eu não posso só ignorar...
— Não se trata de ignorar, filha. — disse o pai — É sobre continuar lutando e escrever sua própria história. Não é fácil, mas não deixe os fantasmas do passado te assombrarem.
Carol ficou em silêncio. Não sabia se podia contar a eles sobre como quase traiu a todos e se uniu ao Anhangá. Sentiu algo, Sara colocava sua mão sobre a dela:
— Senhor e senhora Pires, nessa viagem enfrentamos muitas batalhas difíceis, mas vencemos.
— Sara... — a ruiva suspirou
— Mas não fizemos isso sozinhas, tínhamos amigos, cada um com suas próprias habilidades.
Ela piscou para Carol, e então contaram sobre o que viveram. A Nawá se sentiu mais confiante pra falar seus motivos, como queria trazer justiça ao seu povo, mas acabou não agindo de forma correta. Eles ouviram com atenção cada palavra dela, a forma como se desculpava por ter desviado do caminho e depois como retornou com o apoio de Sara e seus novos amigos. Apertou a mão dela mais forte:
— Eu estava insegura, mas precisava contar tudo. — concluiu
Nilton se virou para o casal Pererê:
— Vocês sabiam de tudo isso?
— Elas nos contaram hoje mais cedo. — disse Janice — por isso achei melhor convidá-los pra vir aqui.
— E ainda não falaram a melhor parte. — Estevão sorria, mexendo as sobrancelhas
— Qual parte? — Nilton cruzou os braços
Carol olhou para Sara, sorriram uma para a outra:
— Estamos oficialmente namorando, pai!
Ele ficou um pouco em silêncio, via o sorriso delas e o de Estevão, que tinha um sorriso tão largo que até parecia que tinham anunciado noivado.
— Ainda não estavam? — perguntou
— Pai! — Carol corou
— Agora somos oficialmente família, Nilton! — brincou o homem — Vai ter que aturar minhas piadas!
— E qual a diferença disso para o que já era antes? — ele perguntou
Janice e Mariana riram. Aqueles dois juntos era sempre uma comédia, quase como se fossem irmãos.
As garotas ficaram felizes em como seus pais aceitaram o romance delas rapidamente, terminaram de jantar.
Chegava o momento de se despedirem, Carol voltaria pra casa com os pais, o que não era longe, poderiam conversar gritando da janela se quisessem.
— A gente se vê amanhã. — Sara sorriu
— É bom poder voltar pra casa depois de todo esse tempo.
— Mal posso esperar pra próxima missão dos deuses! — ela estava animada
Carol riu, amava aquela empolgação. Beijaram-se, então se despediram.
Sara se sentia bem por estar em casa, poder deitar em sua cama e relaxar. Olhava para seu gorro vermelho, de certa forma, era a prova de que tudo havia mesmo acontecido.
Carol seguiu com os pais, assim que entraram em casa e fecharam a porta, olharam seriamente para ela:
— Filha, entendemos que teve a melhor das intenções... — começou a mãe
— Mas ficamos realmente preocupados com o que houve. — disse o pai — Não falamos nada na frente deles porque achamos melhor conversar em casa.
— Eu imaginei... — ela suspirou
— Seu desejo por justiça nós compreendemos, mas dar as costas pra Sara...
— Eu me arrependo disso todos os dias...
— Nós achamos que é melhor fazer terapia, minha filha. — disse Nilton — Nós confiamos em você, mas precisamos ter certeza de que não sairá do caminho de novo. Espero que entenda.
— Eu compreendo, pai.
— A decisão de contar à Sara será sua.
Ela assentiu, um pouco cabisbaixa, mas depois levantou a cabeça:
— Achei que vocês iam brigar comigo...
— É complicado por se tratar do nosso povo... — Disse Mariana — Muitas vezes eu me pergunto se foi certo ir embora, se nossos antepassados fariam diferente...
— Temos que fazer o que pudermos para continuar sobrevivendo e não deixar nossa cultura se apagar. — disse Nilton — Acredito que Tupã pode ter te escolhido por isso.
Eles estavam certos. Sua luta era constante, mas jamais estaria sozinha de novo. Seria sempre uma Guardiã de Tupã.

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