Fantasmas da Ilha

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Cacimba do Padre, Fernando de Noronha

Malu queria se afastar, esfriar a cabeça, literalmente. Rudá, deus do amor, já havia lhe dito várias vezes que o fogo era destrutivo se viesse do ódio, mas era seu maior combustível. Não tinha muita certeza de onde estava, parecia ser um lugar mais vazio, uma praia de areia branca e fortes ondas. De cada lado, altos rochedos e paredes de rocha nua avançando para o mar. De lá dava para admirar as pedras gêmeas, os "Dois Irmãos". Decidiu que era melhor prosseguir seu treinamento, como não havia ninguém, se concentraria em atirar fogo. Socava o ar, de seus punhos saíam as labaredas que se apagavam antes de tocar o solo. Concentrava sua angústia ali, em cada soco que dava. Era insuportável ouvir Beto com suas baboseiras sobre família, mas como ele ia entender? Lembrava-se das ocasiões nos salões dos deuses onde, na mesa de jantar, conversava a em alto e bom som sobre seus inúmeros irmãos. "Aquilo era irritante", pensava enquanto dava mais socos flamejantes, "ridículo". Não conseguia parar de compará-lo ao seu colega habitual, Bóris Tadeu, sempre tranquilo, na dele. Nunca lhe cobrava explicações, dava seu espaço. Talvez não precisasse perguntar nada, afinal, ele a viu no dia que a igreja pegou fogo e quase acabou com seu genitor. Socava o ar com mais raiva, se aquele careca não tivesse se intrometido, podia estar livre disso agora. 

— Aaah! — Gritou enquanto prosseguia com os socos de fogo, depois parou.

Sabia que não era culpa de Bóris, ele só era alguém que respeita demais o fogo, só isso. Ela olhava seus punhos fechados, os braços cansados, começou a dar chutes no ar, saindo mais labaredas. Começou a pensar no olhar aterrorizado de Beto quando viu sua transformação. Estava tão acostumada com Bóris que não expressava qualquer reação de medo que ver aquilo no outro guri a deixou abismada. "Mas afinal, que diferença faz se tem medo de mim ou não?", Questionava para si mesma. Era ridículo estar sentindo de verdade alguma saudade de Bóris. Não era tão estranho, na verdade, pois foi seu companheiro de viagem desde que saíram do Rio Grande do Sul e era sua dupla no treinamento, mostrando grande aptidão em cuspir e controlar fogo. Ela, de certa forma, o invejava por ser tão hábil, mas não diria isso para que não ficasse convencido. Parou um pouco com os chutes, deitou-se no chão, começou a fazer algumas abdominais. Queria se tornar mais forte, mais rápida, e o melhor caminho era sozinha. Queria focar no treino, mas sua mente não a deixava em paz, a lembrança de sua mãe e seus cavalos. Rudá lhe falava de amor, mas eram os únicos pensamentos que lhe ocorriam. As deusas Angra e Tatamanha também lhe advertiam sobre o uso indevido do fogo para violência. Deitou-se no chão, estava suada e ofegante. Observava o céu, agora escuro. Não queria voltar ainda, podia dar mais de si naquele fim de mundo, sozinha. Se levantou, mas antes que pudesse continuar, ouviu passos. Atirou na direção de onde vinham, não seria incomodada, mas os passos não pararam. A figura chegava mais perto, ela pensou em atirar mais uma vez, mas viu que se tratava de uma mula branca. Para seu desgosto, ela vinha sendo montada por alguém, não era um simples homem de chapéu e vestes brancas, seu corpo e o da mula quase transparentes, como se fossem feitos de poeira. Conhecia bem aquela vestimenta, se tratava de uma batina.

— Quem é você e o que quer aqui?

— Sou o Padre Francisco Adelino de Brito Dantas. Vivo aqui desde 1888.

— Tinha que ser um fantasma. — cruzou os braços, nervosa. 

— Pode ficar aqui, minha querida. — ele tinha uma voz calma, suave.

— Não me chame de "querida". Detesto isso.

— Tudo bem, como desejar. Eu não faço nada, apenas vigio minha fonte sagrada. Tens permissão para beber a água dela, irá revigorar suas forças.

— Eu dispenso sua oferta. 

Ele mantinha a calma, desceu da mula, o animal chegou perto de Malu, sentia alguma conexão com a garota.

Os Guardiões de TupãOnde histórias criam vida. Descubra agora