Meus Amigos

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Salão dos deuses, Gruta de Ubajara, Monte do Ibiapaba, Ceará

Os sete haviam acabado de arrumar suas malas para a viagem:
— Muito bem, — disse Tupã — Abeguar, deus do voo, pode levar Maria Luísa e Bóris Tadeu ao sul. Pólo, deus dos ventos, com a ajuda do furacão de Sara irá levar os outros. A primeira parada é Tomé-Açu, no Pará, onde reside a avó de Manoel, em seguida as duas garotas vão para Manaus, por fim Polo levará Iago e Roberto para São Paulo de Olivença e Tabatinga, respectivamente. São cidades próximas da extremidade do Amazonas.
Todos se despediram dos gaúchos, que seguiram com Abeguar, deus do voo, para o Rio Grande do Sul.
Polo, deus dos ventos, auxiliava Sara em como fariam para levar os cinco.
— Um momento! — chamou Moangá — Poderiam aproveitar a viagem e me deixar em Manaus?
Sara olhava para o deus, se ele permitisse, teria prazer em levá-lo, afinal, ela e Carol ficariam em Manaus mesmo.
— Não há como lhe negar um favor. — Riu Polo — Só que vamos parar no estado do Pará primeiro.
— Está tudo bem. Chegando lá, me despeço do jovem Manoel.
Estavam todos prontos, pegaram suas malas. Polo e Sara criaram um furacão para ser o transporte deles, então partiram.

Tomé-Açu, Pará

Foram 1.200 km de viagem até a cidade de Manoel. Era uma sensação estranha estar de volta após tanto tempo.
— Quando estiverem prontos, seguimos. — disse Polo
— Esperem! — Manoel pediu antes de abrir a porta, se curvou — eu seria muito grato se aceitassem entrar em minha casa! Minha avó é doce e gentil, serão bem recebidos!
Iago arregalou os olhos, Beto esboçou um sorriso, Carol deu um passo pra trás:
— Todos nós? — ela perguntou, um tanto insegura
— Sim! — ele respondeu, embora um pouco nervoso — Eu... Eu devo muito a todos vocês! Também traria Bóris e Malu se pudesse, mas tiveram que tomar outro caminho...
— É um jovem de bom coração. — comentou Moangá — Não vejo porque recusar.
Ele ficou muito feliz, então abriu a porta. Retirou os sapatos, os deixando na entrada, os outros seguiram.
— Vovó? Cheguei em casa! — ele chamou
Aguardaram um pouco, podiam ouvir os passos arrastados da senhora pelo corredor. Usava um vestido verde água, um coque nos cabelos grisalhos, os olhos como os de Manoel. Esboçou um largo sorriso ao ver o neto na porta:
— Bem vindo de volta! — ela respondeu
O rapaz correu até ela para abraçá-la, não tinha nem noção de quantos meses se passaram desde a última vez que se viram, tinha tanta coisa a dizer que as palavras não saíram, começou a chorar. Dona Ceuci o envolveu em seus braços, o apertou com força, seus olhos também marejados.
— Você cresceu, meu neto.
— Vovó... Me perdoa... Me perdoa... — ele chorava e soluçava
— Querido... — foi então que percebeu as visitas na porta — Acho que tem algo que quer conversar, não é? — Ela afastou a franja dele e lhe beijou a testa — Por que não me apresenta seus amigos?
Ele se virou, quase esqueceu a presença deles. Passou a manga da blusa nos olhos, tentou esboçar um sorriso:
— Essa é minha avó, Ceuci! — então se virou a ela — São as pessoas que eu conheci na viagem. Eles são... Quase como eu... — limpou a garganta — Essas são Sara, Carol, Iago e Roberto...
— Pode chamar só de Beto. — ele acenou
— E o senhor Moangá, um pajé que me ajudou a... Bem... Ter o controle...
O pajé se aproximou, assentiu com a cabeça:
— É um grande prazer, dona Ceuci. Seu neto sempre falou muito da senhora.
— Fico aliviada em ver que não estava sozinho. — ela sorriu — podem se sentar, fiquem à vontade. Posso lhes oferecer um pouco de chá?
— É muita gentileza, senhora... — Iago respondeu, um pouco sem graça.
Se ajoelharam em volta da mesinha do centro da sala enquanto a velhinha foi trazer uma bandeja de chá.
— Sua avó é bem legal! — comentou Beto
— Ela é sim. Desculpem por chorar de novo, vocês devem estar cansados disso...
— Ninguém pode te julgar. — disse Sara — Eu imagino que quando ver minha mãe também vou chorar. — ela sorriu
— Bom, sim, mas...
— Vocês vão ter tempo. — Beto pôs a mão sobre a dele — Aproveita que tá em casa, relaxa.
Ele sabia que seu amigo tinha razão, mas não deixava de ter medo. Provavelmente sua avó até sabia sobre o que ele estava se desculpando, mas não entrou no assunto.
Carol se mantinha quieta, sentia que não era certo estar ali, não depois de ter tratado Manoel tão mal durante a viagem de Manaus.
— Fique tranquila. — Moangá pôs a mão no ombro da garota — Ele não tem mágoas de você.
— Como você...
— Eu acompanhei vocês três, lembra?
— O que estão falando? — perguntou Sara
Iago olhava pra ela, imaginava o assunto. Virou-se para Manoel:
— Acho que Pólo não vai querer esperar muito. Se tiver algo a dizer pra nós...
Ceuci retornou com a bandeja de chá e alguns docinhos, ajoelhou-se junto a eles na mesa:
— Eu agradeço por terem cuidado do Manoel pra mim. Uma deusa disse em meus sonhos que ele saberia fazer o que era certo... eu tive medo...
— Vovó... — ele se deteve um instante, mas não podia mais adiar — A senhora sabia o que eu era e sobre meus pais?
Fez-se silêncio, todos baixaram a cabeça. Ela respirou fundo.
— Sim, eu sabia. Não te contei antes porque achei que não estava pronto... Eu nunca te culpei por isso, pois sabia que nem se lembrava... E aquela criatura assombrando seus pesadelos... Meu pequeno Manoel nunca faria aquilo. — ela olhou em volta, as expressões de cada um à mesa — Eu imagino que todos vocês também viram. Foi por isso que ele viajou, não é?
— Seu neto tem um coração de ouro. — respondeu Moangá — Os deuses lhe deram o poder justamente porque sabiam que era capaz.
Carol se levantou da mesa:
— Me deem licença... — ela saiu pela porta da frente
Sara quis levantar e ir atrás dela, mas Iago a deteve:
— Deixa que eu vou. — ele se pôs em pé — desculpe o tumulto, dona Ceuci
Ele saiu. Beto olhava para Manoel e para Moangá, um tanto confuso com a atitude da garota.
— É minha culpa... — Manoel pôs as mãos na cabeça — ela ainda me odeia...
— Não é verdade. — disse Sara — Ela quem se sente culpada. Se pudesse ter visto o rosto dela quando te trouxe de volta à vida, saberia que não está triste contigo, e sim com ela mesma.
— O que aconteceu? — Ceuci perguntou, confusa com toda aquela situação — Vocês são todos amigos, não são?
— É complicado, vovó... — ele respirou fundo — Eu realmente fui pra Goiás como falei, mas...
— Mas?
— Viajamos pra Manaus pra encontrar o senhor Moangá...
Ela olhava na direção do pajé:
— Então sabe o que houve?
— Foi um mal entendido, uma emboscada. — ele respondeu — Fizeram de tudo para que ela se voltasse contra nós, até mesmo forçar seu neto ao extremo.
Ela parecia surpresa, mas ao mesmo tempo, imaginava que ele se tornaria a fera em algum momento. Respirou fundo:
— Meu querido, quer conversar sobre isso? Você... Machucou alguém?
— Foi legítima defesa! — Beto se apressou em dizer
— Tá tudo bem... — disse Manoel — Eu preciso ser sincero com minha avó. — respirou fundo, contava nos dedos enquanto falava — Teju Jagua, Mboi Tu'i, Moñai, Jaci Jaterê, Kurupi, Ao Ao e Luison. São os nomes deles, me atacaram em conjunto. Eu me arrependo todos os dias pelo que fiz com eles, se pudesse ter uma oportunidade de pedir desculpas, eu pediria. — parou para respirar fundo mais uma vez — Eu não sei se eles eram realmente ruins, não tive chance de conversar, de fazer nada...
— Ninguém pode te culpar por isso. — disse Moangá
— Então isso é o que te aflige, meu querido? — sua avó perguntou em um tom calmo
— Eu encontrei o deus que criou essa fera, se chamava Jurupari. Disse que foi criado pra proteger a floresta, então perguntei de meus pais... — a voz dele falhou, prestes a chorar de novo. Precisava saber se era verdade, mas mesmo que fosse, nada justificava suas mortes. Havia os encontrado quando estava prestes a morrer afogado, eles o perdoaram, mas ainda assim doía pensar que era por sua culpa, porque um deus achou que era o "certo".
Ceuci o abraçou.
— Eu te devo desculpas, meu neto. Nunca disse o tipo de trabalho que faziam. Era uma época complicada... Eu sempre fui amiga dos Satere-Mawé, a terra deles era farta... Seus pais faziam o que o chefe mandava. Eles foram madeireiros ilegais, não nego isso, mas eram pessoas amorosas que tentavam dar uma vida melhor pro filho...
— Então era verdade... — dizia entre soluços — eles agiram contra a natureza... Os deuses os puniram através de mim...
— Manoel...
— Eu... Eu sinto muito... Não foi minha escolha... Eu nem sabia de nada...
Beto se aproximou para abraçá-lo também:
— Aquela coisa não é você. Já provou isso várias vezes.
— Deuses também erram. — disse Moangá — Ser a vontade deles não torna isso correto. Jurupari também matou a própria mãe, ele projetou o erro dele em você.
— Isso é tudo muito complexo... — suspirou Sara
Enquanto isso, Carol e Iago estavam do lado de fora da casa:
— Por que veio atrás de mim? — ela perguntou de costas pra ele
— Porque eu não sei o que se passa na sua mente. — ele cruzou os braços — Deve ser muito duro aceitar que Manoel é uma boa pessoa e que você se enganou.
Ela franziu a testa:
— Veio jogar na minha cara?
— Eu sei que também tive minha parcela de culpa! — ele disse um pouco alterado — Devíamos ter falado disso antes... Eu não tinha ideia de que você cogitava mudar de lado! Também nunca conversou com a gente!
— Eu nunca fui muito sociável... — ela virou a cara — eu não sei como a Sara faz isso tão facilmente... Eu só... Não consigo. Eu me levantei da mesa porque sei que estou sobrando, eu não devia estar aqui... Ele tem as questões pra resolver com a avó e vocês são muito mais amigos dele que eu...
— Mas ele convidou todos nós! Não só a mim e ao Beto, mas você e Sara também. Ele se culpa por tudo que fez e como isso afetou sua decisão de se afastar...
— Eu sei. — ela suspirou — Eu vi ele lutar com Ticê sem recorrer à transformação... Eu não tenho mais mágoas dele, pra falar a verdade... Eu não consigo me perdoar por dar as costas à vocês...
— Todos nós erramos. Eu era obsessivo demais, não enxergava o que tinha ao meu redor. Eu acho que essa viagem mudou todos nós...
Ela não respondeu. Sabia que precisava se desculpar com Manoel por ter julgado ele mal, mas nem sabia por onde começar. Iago lhe estendeu a mão:
— Você não tá sozinha. — ele sorriu — Precisa acertar isso pra seguir em frente.
Ela apertou a mão dele, então entraram na casa de novo.
— Desculpe preocupar vocês... — Carol colocava o cabelo para trás da orelha
— Eu... — Manoel estava um pouco sem graça, procurava as palavras certas — Me perdoa por tudo o que aconteceu...
— Eu quem te devo desculpas. — ela respondeu — No Salão dos Deuses você fez de tudo para que eu enxergasse a realidade... Lutou contra Ticê sabendo que não venceria... Realmente falou sério sobre dar a vida pra me trazer de volta ao lado certo... — ela balançou a cabeça — Eu não tenho nem palavras pra me desculpar... Mas preciso te agradecer... A todos vocês... Por não desistirem de mim.
— Você salvou a minha vida. — sorriu Manoel — acho que com isso estamos quites.
— Você me curou também. — sorriu Beto — Já provou estar do nosso lado.
— Viu só? — Sara abriu um largo sorriso — Ninguém tem ressentimentos, somos todos amigos!

— Manoel realmente conheceu um grupo bem interessante. — riu Ceuci
Tomaram chá juntos, conversaram, o rapaz contava pra avó sobre muito do que aprendeu na viagem:
— Eu decidi que quero estudar mais sobre os deuses e as lendas Tupi! Como meu guardião é pra ser usado em último caso, eu posso ajudar melhor se agir com inteligência.
— A ideia de afogar o Anhanhgá foi genial! — disse Sara
— Todos ajudaram... — ele corou de leve, coçava a cabeça — Não teria conseguido sem vocês...
— Mas o plano foi seu! — Beto dava uns tapinhas nas costas — É o cérebro da equipe!
Riram juntos, não tinha como negar que os conhecimentos de Manoel sobre o inimigo e a estratégia com os poderes de cada um foi o que levou à vitória.
Entardecia, o pajé se levantou, por fim:
— Foi um imenso prazer ficar aqui, mas acho que devemos retornar. A família de cada um os aguarda.
Assentiram, nem perceberam o tempo passar. Beto abraçou Manoel com força:
— Vocês é como um irmão pra mim. Espero manter contato.
— Também espero. — ele sorriu, mas era difícil se despedir — Eu acho que vou chorar de novo...
Iago abraçou os dois:
— Sem problema, chore a vontade. — brincou ele — isso não é um "adeus", é um "até logo".
Abraçaram-se com força, aqueles com certeza eram seus amigos mais próximos.
Carol se aproximou, um pouco tímida, estendeu a mão pra ele:
— A gente se vê por aí.
Ele apertou sua mão, em seguida foi Sara quem veio:
— Vamos ser sempre uma equipe, disso eu tenho certeza!
Ela o abraçou, o erguendo do chão.
Por último, foi Moangá quem se despediu:
— Eu estou orgulhoso de você, jovem Manoel. Continue sendo essa boa pessoa que você é.
— Muito obrigado, senhor! — ele se curvou em respeito.
Os cinco saíram, Manoel e sua avó acenavam enquanto Polo criava seu furacão.
Tinham razão, não era um adeus. Sua avó o abraçou mais uma vez, estava feliz do neto que retornara um homem muito mais forte do que quando partiu.

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